Manifesto do coletivo Pó de Poesia

O Poder da Poesia contra qualquer tipo de opressão
Que a Expressão Emocional vença.
E que o dia a dia seja uma grande possibilidade poética...
Se nascemos do pó, se ao morrer voltaremos do pó
Então queremos Renascer do pó da poesia
Queremos a beleza e a juventude do pó da poesia.
A poesia é pólvora. Explode!
O pó mágico da poesia transcende o senso comum.
Leva-nos para um outro mundo de criatividade, imaginação.
Para o desconhecido; o inatingível mundo das transgressões do amor
E da insondável vida...
Nosso tempo é o pó da ampulheta. Fugaz.
Como a palavra que escapa para formar o verso
O despretensioso verso...
Queremos desengavetar e sacudir o pó que esconde o poema...
Queremos o Pó da Poesia em todas as linguagens da Arte e da Cultura.
O Pó que cura.
Queremos ressignificar a palavra Pó.
O pó da metáfora da poesia.
A poesia em todos os poros.
A poesia na veia.


Creia.


A poesia pode.


(Ivone Landim)



domingo, 23 de janeiro de 2011

Um sábado e duas redes

Manézinho contemplou os olhos vermelhos de ódio e cachaça à sua frente,

estendeu a garrafa por cima do balcão e abasteceu aquele copo que parecia

sem fundo, saciando a sede peregrina de João Caboclo. Beberrão ele era,

mas naquele dia, embebedou-se diferente de todas as vezes: a fala

enrolada, mas a cabeça lúcida, quase não tombava, virava o copo e

lascava na ponta da faca, o pedaço de charque, que às vezes arremessava

pra cima e aparava com a boca. Algo estranho naquela sede ribeirinha, de

beber até o rio lá embaixo, se virasse aguardente. Mas o ardente mesmo

era o juízo dele, o dono da bodega, pastorando o último bêbado do sábado à

tarde, o banzo de fim de feira, a matutada voltando pros sítios, e ele

aturando um pau dágua esquisito, bom pagador e respeitador, mas só a

imagem de Elza, o que não foi e tantas possibilidades, fazia-o suportar

aquela besta fubana. Namoro de juventude, dez anos atrás, agora cruzavam-

-se na rua, o cumprimento constrangido da Elza recém–casada, virou

silêncio e olhar perturbado para um chão que nenhum dos dois enxergava,

embora vissem. A vergonha pelo que não fizeram, do desejo aspirado à

força bem para dentro, a roedeira terna e eterna, um sofrer fugidio e

pegajoso. E correu o tempo, aquilo ia queimando por baixo, feito fogo de

monturo; João Caboclo, rei da vaquejada, pequeno no tamanho, grande

na brabeza, melhor criador de gado gir das redondezas, cachaceiro emérito

de sábados e domingos, um pirralho a cada ano e nisso já se vão seis.

Desmerecia a esposa, tomando a prima Nicinha como amante, toda a

cidade já sabendo, apenas Elza se fazendo de doida; últimamente, aos

domingos, ia até a igreja acompanhada da pirralhada toda, o marido de

mundo afora, engolindo poeira e farejando aguardente. A Nicinha, boa

bisca, tinha namorado: Doca Faustino, um comerciante de miudezas,

magro, encurvado pela altura e pelo peso dos chifres, diziam as almas

sebosas, na tenda de Biu Barbeiro, entre uma meia–cabeleira e uma

costeleta pé-de-bode no capricho, igual á daquele gringo, Elvis Presley.

Aí os pensamentos de Manézinho fizeram um arco no espaço, feito ave de

arribação buscando rumo, aquela conversa sem fundo nem boca, um lero

–lero de encher até pneu de trem, que nem tinha pneu, olha só. Mas de

supetão, o pau d’ água debruçou-se no balcão e sussurrou, um bafo de

onça filho de todos os alambiques - segredo de bêbado também não tem

dono:

- Manézinho, hoje eu mando Doca Faustino pras profundas dos infernos,

pra derreter os chifres até dar um circuito no zumbi dele, porque corno não

tem alma...

Agora o encachaçado era Manézinho, sem cachaça nem nada, a

confidência entrou no ouvido e começou a dar canga pés, lá dentro do

juízo. A boca secou mas a curiosidade não, debruçou junto dele e

cutucou a onça:

- João, desculpe, não ouvi direito, você vai fazer o que, mesmo?

- Fazer o mundo mais maneiro, mandando Doca Faustino pro inferno,

porra!

Mais uma lapada de cana, outra virada, agora uma lasca de queijo de

coalho, puxou um bolo de dinheiro do bolso, pagou a conta, de gorjeta,

bem, pra que falar na gorjeta agora? Saiu, de cabeça baixa, a Rua do

Carvão estreita pra tanta brabeza movida à cana. Manézinho matutava,

João Caboclo era um bêbado completamente diferente, tombava mas

não conversava miolo de pote, mentira então, muito menos. Assuntou a

vida, olhando pra balança velha, o queijo ainda lá encima, olhou o

prato ainda reluzente por fora e já escuro por dentro. Viuvez à vista,

tiroteio á vista, Elza ainda gostosa, mesmo cheia de menino, aqueles

olhares constrangidos, relâmpagos de desejo mal-satisfeito? Ainda o

queria? Se aquele miserável não acabara com o corpo, a cabeça ainda

dava conta? E a humilhação, depois de tanta esfregação, juração de

amor e ainda fazer sua semente deitar à terra, um medo mais pra nojo que

medo, mesmo. Agora, seis filhos nas costas, a prima raparigando com

o esposo e .... E? Que a vida resolva suas próprias broncas, ele continuava

naquela solteirice viúva, vivendo com a irmã meio louca, na doidice de

ficar na janela da sala, acalentando o filho que só no pano e naquele fundo

destrambelho da cabeça existia. Foi invadido por um cansaço, embalado

no calor de janeiro, sentou num tamborete, escorou-se numas sacas de

feijão, o sono pegou–o de cheio mas desabou correndo de dentro dele,

com os gritos de Neco Gato, de braços abertos, segurando-se no portal,

anunciando que quase agora, no final da tarde, João Caboclo matou Doca

Faustino, e vice-versa, mais pra vice do que versa, pois João Caboclo

levou cinco tiros e só acertou dois, mas no coração de Doca. Manézinho

levantou-se, foi até à porta, olhou para o alto da ladeira da Rua do Carvão,

a tempo de ver duas redes ensangüentadas, transportadas lado a lado.

Os carregadores tentavam proteger o rosto do sol, os chapéus não ajudavam;

mesmo no final da tarde, o sol de janeiro ainda era uma fornalha ardente.


Conto de autoria de André Albuquerque.