Manifesto do coletivo Pó de Poesia

O Poder da Poesia contra qualquer tipo de opressão
Que a Expressão Emocional vença.
E que o dia a dia seja uma grande possibilidade poética...
Se nascemos do pó, se ao morrer voltaremos do pó
Então queremos Renascer do pó da poesia
Queremos a beleza e a juventude do pó da poesia.
A poesia é pólvora. Explode!
O pó mágico da poesia transcende o senso comum.
Leva-nos para um outro mundo de criatividade, imaginação.
Para o desconhecido; o inatingível mundo das transgressões do amor
E da insondável vida...
Nosso tempo é o pó da ampulheta. Fugaz.
Como a palavra que escapa para formar o verso
O despretensioso verso...
Queremos desengavetar e sacudir o pó que esconde o poema...
Queremos o Pó da Poesia em todas as linguagens da Arte e da Cultura.
O Pó que cura.
Queremos ressignificar a palavra Pó.
O pó da metáfora da poesia.
A poesia em todos os poros.
A poesia na veia.


Creia.


A poesia pode.


(Ivone Landim)



sexta-feira, 15 de junho de 2012

carochas, bicicletas & biplanos - 11


Alisei a barba e bati à porta. A bela holandesa veio abrir. Solicitei se podia dormir um pouco e comer alguma coisa. Precisava dum banho mas isso seria pedir muito. Perguntou-me como me chamava. Bem, Fred, tens ali um anexo onde podes fazer isso tudo e de manhã vais embora, não quero que assustes as crianças. Aceitei com muitos agradecimentos e a bela senhora de sardas e vestida como uma hippie antiga conduziu-me a um barracão com um automóvel lá dentro. Apontou-me uma casa de banho, uma espécie de estufa onde podia dormir e disse que já trazia comida. Perguntei se ela queria que eu fizesse algum trabalho ou limpeza como paga por aquela hospitalidade. Ela sorriu. Venho já. Entrei na estufa, uma espécie de sala com um sofá, candeeiro, móvel com livros e um aquecedor a gás. Nem sombras de plantas, apenas umas caixas num dos cantos. Do lado de fora da estufa um Ford Capri verde em excelente estado de pintura mas com os pneus em baixo. Não devia andar há muito tempo. Entrei na casa de banho, pequena, limpa, com um duche a um canto e muita luminosidade. Podia viver ali sem incomodar ninguém. Apenas não havia onde fazer comer. A linda holandesa dos seus bem conservados quarenta anos surgiu com umas calças, uma camisa aos quadrados de pescador, um par de sapatos de sola de borracha e uma grossa camisola. Disse que era do ex-marido e que me devia servir. Quer que lhe dê uma vista de olhos no carro, perguntei. Não anda há séculos, há aí ferramentas mas não vale a pena. Já lhe trago comida, pode ligar o aquecedor que a estufa é fria e já lhe trago umas mantas para o sofá. Agradeci tudo e entrei na casa de banho. Tomei um duche frio e vesti as roupas do ex-marido da mulher. Lavei com sabão as minhas roupas e pendurei-as pelo do Ford numa corda. De manhã estariam secas. A mulher apareceu com umas mantas e uma almofada. Foi lá dentro novamente e trouxe num tabuleiro duas fumegantes sandes com carne e duas garrafas de cerveja. Guardanapos e duas maçãs. Não sei como lhe agradecer, apenas queria um lugar para descansar. Sorriu e desejou-me uma boa noite. Comi uma das sandes de carne assada e bebi uma das cervejas. Abri o capô, comecei a limpar o motor. O óleo parecia estar bom. Enchi os pneus, tirei-lhe as teias de aranha. Limpei o filtro do ar, sacudindo-o. Dei um aperto a alguns tubos. Vi todos os níveis. Só faltava a chave para ver se o conseguia ligar. A roupa ia secando. A noite encheu de sombras todo aquele lugar. A estufa não era assim tão fria. Não liguei o aquecedor. Mexi nos livros. Tudo velharias. Descobri uma Bíblia e comecei a ler o livro de Job. Comi a outra sandes e a cerveja. Tapei-me com uma das mantas e uma simpática escuridão abateu-se-me sobre o meu corpo. Sonhei ou penso que sonhei com gatos, moinhos de vento e com um estranho personagem vestido de pirata que conduzia um Ford que ia mudando de modelo e de cor ao longo de planícies sabe Deus de que país. Acordei cedo com a explosão de luz e calor. Um gato malhado olhou-me e fugiu. Lavei a cara e reconheci os meus olhos. Doía-me o corpo. Juntei a roupa e arrumei-a na mochila. Fazia intenções de me ir. Arrumei o livro e ajeitei as coisas mais ou menos como estavam. Que horas seriam? A mulher surgiu e agradeceu o que fiz ao carro. É capaz de pegar ou a bateria está descarregada. Não interessa, quer tomar o pequeno-almoço lá dentro? Não será um abuso, não me sentirei bem, as crianças… Não tenho crianças, apenas disse isso por uma questão de segurança, mais um pouco e diria que era casada com um polícia mas pareceu-me boa pessoa. Entramos na cozinha, onde o gato comia da sua gamela e um agradável cheiro a café e ovos mexidos pairava. Qual é a sua história, porque anda por aí? Perguntou Eve apresentando-se, enquanto me servia café para uma chávena com figuras de um desenho animado qualquer.

23 Jan.



Autor: Carlos Teixeira Luís

carochas, bicicletas & biplanos - 10


O velho fundou uma banda de jazz. Na primeira jam session convidou um baterista e percussionista brasileiro, um contrabaixista português e um pianista americano. O contrabaixista despediu-se por confusão alcoólica, foi o seu argumento. O baterista vivia num mundo de ritmo próprio que os outros tentavam acompanhar. O pianista era louco o suficiente para aceitar todas as sugestões free. Mas esgotava-se e entrava em colapso. Saiu com um pesado esgotamento após duas únicas sessões de quatro a cinco horas cada. Foi substituído por um guitarrista do Mali. Mas os ritmos não acertavam com a percussão. O baterista não quis adaptar-se e o guitarrista foi emprestado a uma banda de world music. Entraram dois saxofonistas, alcoólicos e suaves, quase irmãos gémeos na abordagem dos temas mas lentos para o percussionista. O velho quis manter assim disfuncional e livre. Entrou novo contrabaixista com muita experiência, homem que nunca falava a não ser através do seu usado contrabaixo. Entendia-se com o baterista louco e colava as improvisações aos solos divagantes dos dois saxofonistas. Mas o velho queria um pianista. Nenhum dos que se apresentaram para fazer testes se encaixaram na secção rítmica. Apenas uma organista muito jovem e de ar angélico. Mas o som era excelente e viciante. O velho aceitou-a. A miúda, de apenas dezanove anos em certas faixas cantava o que deu ideias ao velho de ter uma vocalista. Entre os que surgiram ao anúncio, que foram muito poucos, só uma rapariga de grande porte, africana e de ar hip-hop se aventurava nos velhos standards de jazz que o grupo alterava. Fizeram um concerto memorável e louco. Depois cada um foi para o seu lado. O velho iniciou outra banda de jazz. Na primeira entrevista recebeu um famoso pianista desempregado. O velho ouviu por horas a fio. Mudou de ideias e decidiu gravar um disco mas precisava de um contrabaixista e de um baterista. Procurou e entrevistou milhentos músicos e escolheu o velho guitarrista do Mali. Ele aceitou tocar baixo e a usar uma caixa de ritmos. Fizeram um concerto brilhante e o grupo acabou por falecimento súbito do guitarrista, na noite pós-espectáculo. Após o funeral o velho iniciou os preparativos para uma nova banda, neste caso uma big band.

23 Jan.

Autor: Carlos Teixeira Luís

certidão de pele


façam bem amplo esse peito
e que os relógios parem de contar as horas
enquanto o coração passa pelo juízo final

façam esse peito engarrafar o vento
os dias que não são meus
e nele aguardem as chuvas esparsas

deixem as asas a ponto de tocar o céu
de tanto me afundar nesse leito

façam-me cair do ponto mais alto
e que nada interrompa esse solo

que eu não possa negá-lo
antes possuí-lo sob a pele febril
como gelo correndo nas veias...

façam esse peito com medo
no emaranhado de sua loucura
da profundeza do momento
sem zelo ou perguntas
peito é sujeito à certidão de pele.



Poema de Vânia Lopez