A atendente levantou a cabeça da agenda , consultou
o relógio ao lado da porta da ante-sala do consultório , fechou o romance que
lia e chamou :
- Monsieur Honoré Du Balzac, pode entrar . O homem baixinho e
gordo , de aspecto pomposo e lerdo, ergueu-se do sofá , apoiando-se numa bengala
muito bonita, talvez , até bonita em excesso, com detalhes demais para um objeto
de destinação tão simples. Mancava um pouco com o pé direito e seu rosto
apresentava uma palidez esquisita, que lembrava folhas mortas no outono , em
busca de um solo macio , para dissolver-se ao léu , entre a aragem e as ainda
raras chuvas . Uma rápida parada em frente da atendente , ergueu a cabeça
,trocou de mão a impecável cartola , fuzilou a empregada num olhar de desdém:
- Por favor, madame, Honoré De Balzac .Fui muito claro ao anunciar-me.
-
Perdão monsieur...- entre atônita e constrangida, a timidez purpúrea
– O
professor Laennec já está á sua espera , na sala em frente. Por favor... A mão
suada e agora fria , abriu a porta da ante-sala , inclinando a cabeça em
subalterna reverência. Quem diria, aquela ruína engalanada era o grande Balzac !
– pensou e tornou a ocupar o seu posto , voltando aos dramas do seu querido Hugo
, encadernado e amado em marroquim e lombada dourada.Claro, presente de madame
Laennec.
Um claudicante Balzac adentrou o consultório, trôpego, precocemente
envelhecido aos seus quarenta e oito anos , um rosto onde se alternavam a
irritação e o tédio . O gabinete do médico, de suntuosidade idêntica á de tantos
outros que retratara , um arejado e se g u r a m e n te asséptico ambiente
burguês , tão sólido quanto a reputação de seu dono . Mas a doença tinha os seus
questionamentos, surgidos das noites de falta de ar , de dormir sentado , da
insegurança até em subir num coche mais alto: Tudo o que fizera na vida , não
era para ser um burguês superior, um aristocrata do espírito com o melhor que o
mundanismo poderia oferecer ? A vida lhe dava um não sinuoso, quase um talvez ,
acabava-se aos pedaços, insidiosamente , nada definitivo , sem golpes de
misericórdia , antes a sensação terrível que sempre acompanha a consciência
aguda do próprio fim , sorvida homeopaticamente , administrada por uma
providência cruel e indiferente .Sobre a escrivaninha , um inesperado busto de
Minerva , contemplava um tinteiro onde Hipócrates reafirmava a legendária
fealdade, um deus num corpo de íncubo . Uma venerável cabeça ergueu-se em sua
contemplação , um olhar profissional sobre um sorriso de estranha empatia ,
mediu – o da cabeça aos pés e até um pouco da alma, quem sabe . Honoré sentiu um
aperto de mãos firme e saturado de uma autoconfiança até antipática. - Sente-se
Monsieur Balzac , por favor - a pálida mão apontou – lhe uma cadeira quase
lateral á escrivaninha.
- Em que posso servi – lo ? – continuou , como se
contemplando um ponto entre os seus olhos.
O homem pequeno e gordo desfiou
um rosário de achaques , descrições de dezenas de outras consultas , tratamentos
mal-sucedidos, visões da vida e da morte , onde a morte já se confundia com o
viver , tal era sua existência naqueles tempos . Aquele homem era um grande
médico , pensou enquanto descrevia os seus males . Só os muito bons conseguem
tornar-se invisíveis olhando em nosso rosto e nos fazendo falar livremente,
pensou aquele pequeno grande homem .
A torrente de insônias dolorosas e
asfíxicas , a trôpega fuga dos credores e agora de si mesmo , os incontáveis
bules de café , combustível para sua mente criar os cumes e abismos da comédia
humana . A própria história transmutara-se num rascunho que agora narrava , em
súbito improviso . Laennec elevara á categoria de arte a escuta das vidas e das
algaravias dos corpos dos seus pacientes .Inventara o estetoscópio e os
recônditos do corpo e seus sons, eram audíveis áquela mente curiosa e sagaz .
Pontuava um calar-se estratégico com pequenas indagações, quase gestos . Os
assentimentos de cabeça , d i r i g i a m aquele intenso monólogo .
Em
seguida, passou ao minucioso exame físico, sob a guarda de um biombo . Honoré
imaginava a procissão de enfermos que haviam passado por ali , naquele
silencioso isolamento dos males do mundo. O médico empregou um aparelho tubular
para escutar-lhe o peito e as costas. Percutiu-lhe o volumoso e dilatado abdome,
extraindo sonoridades bizarras e distintas . Ao final , apontou – lhe o cabide,
sinalizando o fim do exame :
- O Monsieur padece de diabetes mellitus . O seu
coração e rins me parecem já comprometidos : essa inchação nos pés , essa falta
de ar, essa elevada pressão arterial , a palidez terrosa e a urina espumosa e
doce , falam por si só.
- Palidez terrosa ? Fantástico ! Já apresento então,
afinidades com a terra que me dará guarida , a terra dos cemitérios. Que fazer
para que Belzebu me esqueça ? Ou me considere uma empresa além das suas forças ?
Laennec sorriu . Fitou novamente aquele ponto entre os olhos de Balzac.
Subitamente, relaxou –se na cadeira , esticando o pescoço para trás , falando em
direção ao teto trabalhado e burilado , numa passividade que tinha algo de
felino em sua calma perspicaz:
- Monsieur, conheço-o de fama e já li alguns
dos seus trabalhos. O senhor, á sua maneira , é um grande médico. Pressentir uma
doença antes da sua manifestação , é um dom quase divino . Perceber as doenças
que a nossa sociedade enferma produzirá, é algo fantástico. O meu trabalho é
sobre aquilo já feito, já consolidado, já visível, auscultável e palpável.
-
E daí ? Isso me torna mais fácil morrer ou viver ?
- A sua arte o está
matando a partir de outro plano, o da imaginação. Seu urinar constante, sua
rápida perda de peso e essa fome insaciável ,são o preço das madrugadas sem fim
, atravessadas á café forte e exaustão mental , vivendo centenas e centenas de
vidas a cada mês , com suas alegrias , frustrações , seres bem e mal amados ,
homens e mulheres desfilando um cortejo ao mesmo tempo maravilhoso e mortal para
o senhor. Em seguida, numa agilidade inesperada e jovial, sentou-se ereto e
começou a escrever furiosamente numa longa folha de papel , a caligrafia nítida
, equilibrada e sem floreios. Ao final , estendeu a folha ao já surpreso
paciente:
- Aqui estão minhas recomendações . Foi um grande prazer
conhecê-lo tão intimamente . Sei que nada fará do aqui recomendado, porque é
regido por seus personagens e seu mundo, que lhe parecem muito melhores que a
sua realidade de hoje , monsieur Balzac. Balzac agradeceu, pegou a cartola e
saiu no seu passo trôpego. Laennec permaneceu de pé , mãos nos bolsos ,
contemplando sua escrivaninha.
Conto de André Albuquerque
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