Manifesto do coletivo Pó de Poesia

O Poder da Poesia contra qualquer tipo de opressão
Que a Expressão Emocional vença.
E que o dia a dia seja uma grande possibilidade poética...
Se nascemos do pó, se ao morrer voltaremos do pó
Então queremos Renascer do pó da poesia
Queremos a beleza e a juventude do pó da poesia.
A poesia é pólvora. Explode!
O pó mágico da poesia transcende o senso comum.
Leva-nos para um outro mundo de criatividade, imaginação.
Para o desconhecido; o inatingível mundo das transgressões do amor
E da insondável vida...
Nosso tempo é o pó da ampulheta. Fugaz.
Como a palavra que escapa para formar o verso
O despretensioso verso...
Queremos desengavetar e sacudir o pó que esconde o poema...
Queremos o Pó da Poesia em todas as linguagens da Arte e da Cultura.
O Pó que cura.
Queremos ressignificar a palavra Pó.
O pó da metáfora da poesia.
A poesia em todos os poros.
A poesia na veia.


Creia.


A poesia pode.


(Ivone Landim)



domingo, 30 de janeiro de 2011

Prometeu passeia entre os dedos

Prometeu passeia entre os dedos



“Our house is very beatiful at night”
Lou Reed, in My House




Nesta sexta conto dois meses sem fumar.
Fecho livro, abro janela, desligo a tevê.
E acendo um cigarro.

- Suzi?
Alê resolve ligar.
- Alê ?
- É você, Suzi?
- Acho que sim, e você?
- Também.

O Alê sempre me convenceu a sair de casa, porque eu nunca me dei tempo de aprender a disfarçar qualquer indisposição. Então troco de roupa, ponho uma malha, e da janela do quarto tento decifrar as horas. No relógio, dezoito e uma fração qualquer.

Fecho a janela do apartamento, a porta do quarto, dobro a chave, e desço as escadas como uma louca, atrás de alguma coisa sem nome, somente guiada pelo convite do Alê, que namoro desde que cheguei aqui e que, como eu, divide apartamento e depende da merreca dos pais para pagar o aluguel de seu pardieiro. Corto duas ruas, e lá está o Bruno, cada dia mais gordo, fazendo sinal com sua mão redonda. Me chama pra subir, como se não soubesse a que vim. E lá estou, abrindo ao avesso a porta de entrada do condomínio, do elevador, e da casa que o Alê divide com o Bruno, o gordo da mão redonda.

- Mas quem é vivo sempre aparece – ele diz sorrindo.
Debaixo da camiseta do Bruno, vejo duas pizzas. Disfarço.
- Sabia que tu engordou?
- Não.
- Fique sabendo.

O Alê aparece com a toalha enrolada no cabelo. Ele parece um hippie. Acho prescindível, mas gosto dele. E da barba de riponga dele também. Amo o Alê. Mas hoje não sairemos pra nenhum sushi bar, nem arriscaremos um pub. E como não costumo adivinhar bem, atesto o fato a partir do artefato: Jean-Luc Godard. Acossado. Disfarço cínica e exaustiva aquela cara de episódio recorrente. Peço um cigarro.

- Mas não contaria seis meses?
- Sim, mas com o cigarro na boca, a partir de hoje.
- Aluguei um filme pra gente.
- Mesmo? – eu pergunto, olhando enviesada pro dedão do pé.
- Sim. Olha aqui.

Ele me mostra o filme que já vi. E me leva pro quarto. Faz frio. O saco do Alê fica pequeno quando tá frio, mas o pau dele continua firme como uma rocha e doce como um damasco que eu vou chupando calorosamente, enquanto me masturbo. Ele liga o som. Lou Reed canta pra mim, enquanto o Alê me põe de quatro e enfia gostoso, provando a mim como sou carente. Ele goza na minha boca. Eu gozo logo depois, nunca gozamos igual, fato que ele desconhece. Enfim, daí tudo desaba na cama, e o silêncio se quebra logo, como de costume. Ele se acha intelectual, porque diz entender o Godard. Já eu prefiro achá-lo gostoso, para não elencarmos outro atrito aos demais, afinal estamos deitados entre estes lençóis esperando chegar a grana que paga as contas. Ele pergunta como foi o dia.

- Igual ao seu, só que mais cansativo: cinco entrevistas de emprego: nenhum delas, enquanto tu continua com a bunda sentada na cadeira, sustentando o arquétipo de grande sábio à custa do salário de teu pai. Acho tão forçado. Acho banal e forçado, sabia?

Ele levanta puto, e vai ver o filme. Eu continuo deitada olhando minha bunda empinada no espelho, mas não choro. Não é hora.

( New York Herald Tribune! New York Harold Tribune!)

Jean Seberg. Grita impecavelmente bela aos transeuntes parisienses. Os meninos olham famintos pra ela: Alê põe a mão no queixo. O gordo, no pau. E enquanto os dois marmanjos guardam suas ereções continuo a pensar que chupo muito melhor que a Jean Seberg, e que mesmo aqui, enfurnada neste inferno, levando não na cara a cada vez que mostro esse diploma, que mesmo não cotada sequer para um pornô de quinta, ainda guardo nas marcas de minha face a presunção de uma Liv Ulman.

Tento perguntar por quê tudo acontece nesse ritmo fora de controle, analiso trajetórias e tento achar uma solução menos fatalista, uma decisão que traga resultados ágeis, intercâmbio, metanfetaminas, oportunismo aplicado a docentes senis, mas tudo se estagna tão logo vejo o Alê, transpirando alegria e preguiça.

- Amanhã será um dia diferente – penso comigo mesma. Mas se não tiver sol, será glacialmente mais bonito que agora.

( Bonjour, monsieur inspecteur)

- Tu tem um fósforo? – o gordo pergunta, cigarro no canto da boca.

(Vous organisez voyage maintenant ?)

Empresto minha bituca. E lá estou eu, entre hiatos de silêncio que se movem devagar na sala, alheia a tramas, totalmente cheia de sono, a contemplar o passeio do fogo por entre os lábios de meus dois homens, passeio tedioso, porém dedicado, cujo ciclo se atualiza à medida que a bituca acende um novo cigarro. E se lá vai o último palito de caixa de fósforos.

- Ninguém tá a fim de descer e descolar um fogo?

Michel Poiccard, quanta beleza em teus gestos bruscos. Amo teu senso de negligência, recebo-te como quem te prende a dois instantes em troca do risco de teus pequenos furtos.

A gente se encara cheio de ódio, garras arruinadas, punhais cegos. Estamos absolutamente cansados de continuar a viver. Mas insistimos. Dissesse ele que não me amasse, me encostasse na porta a pontapés, me traísse, enfim. Mas não. Alê preferiu me amar. Pura covardia.

(Ouais, et alors?)

- Porque alguém teria de se levantar, ou tô parecendo muito arbitrário?

( argent a été volé, mais jê vous aime )

Trago bem forte aquele cigarro. Morte paulatina, como o pico de um orgasmo. Capoto na cabeceira do sofá. Bruno, que se encontra exatamente entre mim e o Alê, toma-me o cigarro e dá também seus tragos, produzindo uma espécie hedonista de atividade, cuja ação só terá seu sentido enquanto a chama do cigarro se mantiver acesa. Me olha bem fundo nos olhos.

(Pourquoi vous es triste?)

- Prometeu passeia entre nós – ele diz, como se o segredo do mundo estivesse ao alcance de seus dedos.

(Parce que je suis triste)

Sopro em seu rosto uma lufada de fumaça. Ele ri. Seu riso tem uma duração sui generis, dissipa-se no meio do fumo. Alê esquece o filme pra se aproximar da gente. Somos apenas nós, garimpando nostalgias, como excêntricos escoteiros.

(I don’t know if i’m unhappy, because i’m not free, or if i’m not free because i’m not happy)

- Prometeu está entre nós – ele repete sua epifania, enquanto a gente se integra num único ritmo sob a mesma pena de reacender os últimos cigarros.

(Tu connais William Faulkner ?)

Alê traz algumas long necks. Aos poucos, flagrava seu olhar apagando indícios. Olhava pro céu, igual lobisomem. Aproximo-me. E uivamos os três para a lua que sangrava como uma chaga aberta no firmamento. Sobre sua superfície gigantesca, parcas e fúrias curtem uma trip, enquanto assistem ao trágico espetáculo do inevitável. Então choro, porque o fim é iminente. O último cigarro apaga-se, pondo fim ao nosso harmonioso ciclo.

(C'est un romancier que j'aime bien. Tu as lu Les Palmiers sauvages ?)

- Bruno. Meu pobre Bruno...

Durante toda aquela noite, Prometeu estivera entre nós, a fim de que tudo naquela noite se mantivesse fresco e pacífico, ritual de passagem vagabundo para outro dia. E lá está Belmondo, atirado ao chão, como convém aos marginais, rosto à luz itinerante de um sobejo de tabaco. Alê me beija.

- Você é minha Jean Seberg.

(C'est vraiment dégueulasse)

- E você, meu Poiccard.

(Qu'est ce qu'il a dit?)

À minha volta, tudo acabado e triste: garrafas no chão, Prometeu acorrentado, Bruno adormecido sobre seu sofá.

(Vous êtes vraiment une dégueulasse)

Resolvi nunca mais retornar àquela casa. E nunca mais voltei a fumar.

(Qu'est ce que c'est "dégueulasse"?)


Conto de autoria de Plynio Nava.