Manifesto do coletivo Pó de Poesia

O Poder da Poesia contra qualquer tipo de opressão
Que a Expressão Emocional vença.
E que o dia a dia seja uma grande possibilidade poética...
Se nascemos do pó, se ao morrer voltaremos do pó
Então queremos Renascer do pó da poesia
Queremos a beleza e a juventude do pó da poesia.
A poesia é pólvora. Explode!
O pó mágico da poesia transcende o senso comum.
Leva-nos para um outro mundo de criatividade, imaginação.
Para o desconhecido; o inatingível mundo das transgressões do amor
E da insondável vida...
Nosso tempo é o pó da ampulheta. Fugaz.
Como a palavra que escapa para formar o verso
O despretensioso verso...
Queremos desengavetar e sacudir o pó que esconde o poema...
Queremos o Pó da Poesia em todas as linguagens da Arte e da Cultura.
O Pó que cura.
Queremos ressignificar a palavra Pó.
O pó da metáfora da poesia.
A poesia em todos os poros.
A poesia na veia.


Creia.


A poesia pode.


(Ivone Landim)



quarta-feira, 27 de abril de 2011

Bico-doce

O tempo passa, e quando deu pela coisa Valdecir estava com trinta e dois mal vividos. Sobrevivia aos trancos e barrancos, de expedientes e favores, vagau e divagador. Como não fazia nada podia ser considerado um craque da subsistência mundana. Sem passagem pela polícia, era malandro manso: olhar dócil, voz respeitosa, gestos medidos. Sempre um argumento a justificar a semivigarice - ora a saúde, ou a pouca instrução, até falta de tempo.

Em permanente atraso na pensão, só não era despejado pela Maria Baiana porque de vez em quando chegava junto, apertava suas carnes fartas, deitava em seu colchão de crina, permitindo que a morena montasse seu corpo esquálido e deslizasse na vara tesa. Ainda ganhava café da manhã.

Entre todas as manhas, essa: gostava da noite. Assim que um dia, em que tinha juntado trocado suficiente, tomou um banhão, tascou um perfume da Baiana, e foi a um cabaré, rever as formas, sentir o calor e a maciez da ilusão.

Quieto num canto, bebida parada no copo. Passavam junto dele loiras de bocas vermelhas, vestidos curtos, corpos quentes. Sorriam, tinham olhos brilhantes, e eram solitárias; putas são seres solitários. Sentia-se bem ali, uma solidariedade concubina.

Uma baixinha lançava olhar insistente. E agora? Se ignorasse, acabaria perdendo a chance; se aceitasse, teria que pagar uma bebida. Sofria a indecisão quando ela se aproximou, e não teve jeito, porque às vezes um é feito pro outro.

Estendeu a mão e o nome - Rosa. Sentou no tamborete ao lado. Coxas roliças são melhores que pouco dinheiro. Ofereceu bebida. Feitos um para o outro, ela colaborou:

- Bebo do teu copo.

Porra, vai por mim: não tinham assunto. Pra quebrar o silêncio, ele falou “Vou ler tua mão.” Além do mais, ler a mão era uma cantada que não costumava falhar. Tem mulher que adora ser enganada, pra dar sem responsabilidade. Rosa estendeu a mãozinha esquerda.

- Você está apaixonada.

- Como você sabe? Conta mais!

Valdecir preparou o bote:

- Ele tem outra.

A mão tinha linhas e marcas, como qualquer outra, só que era mais macia e aflita.

- Outra quem?

- Outra, porra, bonita e gostosa como todas as outras, como vou saber?

- E eu, sou o que?

- Pra mim, você é bonita e gostosa.

- Você também tem outra?

- Não tenho nenhuma.

Ela ajeitou com os dedos os cabelos curtos. Ele já esperava:

- Eu só posso sair depois das duas. Tudo bem?

Elas sempre pagam na mesma moeda.

- Por você eu faço qualquer coisa.

- Mesmo?

- Mesmo.

Duas e meia, garçons empilhavam mesas, varriam o chão, ela veio. Pegou-o pelo braço, e levou-o ao seu apartamento, pequeno, porém pago com o suor dos seus lençóis. Tinham dado a primeira, ela quis saber:

- Onde você aprendeu a ler a mão?

- Eu não sei ler a mão. Estava a fim de você.

Apoiada no cotovelo, voz irritada:

- Quer dizer que ele não tem outra?

- Ele, quem?

Ouviram a chave abrindo a porta de entrada. Mal tiveram tempo de cobrir os corpos com o lençol, um tipo mal-encarado, careca e forte, entrou no quarto:

- Que merda é essa?

- Ele disse que você tem outra.

A janela estava aberta, calor sufocante, agora insuportável. O brutamontes puxou um revólver da cintura:

- Põe a roupa.

Valdecir respirou aliviado, e vestiu-se rapidinho.

- Agora, salta.

- Salta?

- Pela janela. Salta.

- Mas estamos no décimo - segundo andar!

- Por isso mesmo. Salta! Ou eu atiro na tua cabeça.

Uma bala na cabeça é sempre fatal. Salto no escuro tinha sido sempre sua vida. Chegou perto da janela, a rua tava longe pra caralho, explodiria como uma melancia, sangue e merda espalhados no asfalto. Lançou a fala mansa:

- Quantos você já matou?

- Não interessa, você não é polícia. Pula, ou te furo a cabeça!

- Posso ler tua mão, antes?

- Pra que?

- Pra eu saber quantos você já matou, ou se serei o primeiro.

- Você não vai pular?

- Nem fodendo.

- Então vou atirar!

- Deixa eu ler primeiro, que diferença faz?

- Bom... Então vem ler. Se você acertar, só atiro no joelho. Se errar...

Pegou a mão do cara, virou a palma pra cima, e viu que era igual a todas as outras: linhas e marcas. Fez alguns sons com a boca, murmurando consigo mesmo, balançando a cabeça em desaprovação. Olhou pro rosto boçal do outro, ar piedoso. O grandalhão se impacientou:

- O que foi? Viu o que?

- Você não vai gostar...

- Fala logo, porra!

- Ela tem outro. Você tá sendo chifrado. Sinto muito.

O brutamontes olhou a amante, que já estava pálida:

- Você sempre disse que eu era o único... Que não teria outro...

- Ele é um mentiroso, Armando, não sabe ler mão, nem nada... Assim você me deixa preocupada!

Enquanto Armando sentava na cama, a arma apontando para o chão, o olhar buscando os cornos da lua, a mulher se explicava, entre lágrimas.

Valdecir deslizou em direção à porta. Abriu, saiu, e tomou o elevador. Não ouviu tiros, nem gritos. Andando sem pressa rente à parede, juntava forças pra chegar em casa e garantir o café da manhã.

Conto de Luís Valise