Manifesto do coletivo Pó de Poesia

O Poder da Poesia contra qualquer tipo de opressão
Que a Expressão Emocional vença.
E que o dia a dia seja uma grande possibilidade poética...
Se nascemos do pó, se ao morrer voltaremos do pó
Então queremos Renascer do pó da poesia
Queremos a beleza e a juventude do pó da poesia.
A poesia é pólvora. Explode!
O pó mágico da poesia transcende o senso comum.
Leva-nos para um outro mundo de criatividade, imaginação.
Para o desconhecido; o inatingível mundo das transgressões do amor
E da insondável vida...
Nosso tempo é o pó da ampulheta. Fugaz.
Como a palavra que escapa para formar o verso
O despretensioso verso...
Queremos desengavetar e sacudir o pó que esconde o poema...
Queremos o Pó da Poesia em todas as linguagens da Arte e da Cultura.
O Pó que cura.
Queremos ressignificar a palavra Pó.
O pó da metáfora da poesia.
A poesia em todos os poros.
A poesia na veia.


Creia.


A poesia pode.


(Ivone Landim)



sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Uma perna para o meu avô

Meu avô morreu dormindo, e continuaria ali dormindo o grande sono como se fosse

o outro, com a alma gargalhando de ter enganado a gente, se minha mãe

não percebesse, tentando acordá-lo para a comida da manhã. Eu não gostava

de vê-la despertar meu velhinho, pois ele sonhava muito e passava a manhã inteira

me contando os sonhos, com um brilho nos olhos, que apenas fitavam de mentirinha

as montanhas distantes e as savanas. Eu olhava embevecido os seus olhos, que tinham

umas rodinhas brancas engraçadas abraçando as meninas dos olhos. Meu avô, Mahbub,

já não enxergava há seis anos; um médico americano, muito grande, de cara vermelha,

falou em catarata, mas viajou para outras terras antes de operar o meu avô e ele

continuou sem enxergar nada, mas nunca se importou com isso, pois seu pai, também

ficara cego e morrera do coração, há muitos anos atrás. O doutor explicou que os

anéis em volta das meninas do olhos não eram a catarata, mas também apareciam nos

olhos de gente velha; a catarata era mais pra dentro. Minha mãe ficou preocupada,

pegou o espelho e ficou olhando um tempão, o doutor riu e falou que ainda faltava um

bocado de tempo pros anéis dela nascerem. Depois, fez cara feia pra mim, pois soprei

nos olhos do meu avô, tentando mexer a água da catarata e vê-la. Mas a perna de

madeira, ele disse que ia demorar um pouco, mas chegaria no próximo carro da Cruz

Vermelha e deu à minha mãe um papel, pra ela receber a perna e botar no meu avô,

quando o caminhão de pernas passasse por lá. Fiquei muito triste, mas sabia que meu

avô estaria cantando e dançando, como sempre fizera, lá nas savanas eternas. Não

entendi o choro de minha mãe, que batia a cabeça no chão e exclamava maldição para

todos nós. Deixei que muita água saísse dela e perguntei pela maldição.

- Olorum nos castigará duramente, teu avó vai retornar para ele sem uma das pernas,

tudo no mundo é de Olorum , inclusive nós e nossas pernas. Isso atrai castigo, pois

Olorum nos deu tudo e tudo devemos levar de volta.

Aquilo tudo confundiu minha cabeça. Olhava ao redor, nada via além do meu avô no

calmo sossego dos mortos, sobre uma esteira; o toco da perna envolto por uma

manta; o cheiro da comida pouca oferecida pelos chapéus azuis enchia minha cabeça e

meu nariz, mas a fome veio e passou com a ventania lá fora.

Saí e vaguei pela aldeia durante horas.Vez por outra, passava alguém mutilado pelas

minas milicianas e eu imaginava quanta ira caberia no coração de Olorum, com tantas

pernas e braços roubados pela guerra. Mas quem estava morto em minha casa, era o

meu avô, o velho Mahbub, um homem bom e honesto. Não sei quanto tempo passei

vagando pelo campo. Voltei para casa exausto, mais de pensar que de caminhar. Se

meu pai fosse vivo, já teria pensado alguma coisa, mas eu sou Nanji, seu filho de doze

anos, correndo da fome e dos milicianos, com as minhas duas pernas e escondendo a

minha mãe, Abena, que teve um filho gerado à força, durante um ataque dos

milicianos, mas nascido morto pela graça de Olorum, inimigo da maldade dos homens.

Dormi um sono pesado e sem sonhos. Pela manhã, um cheiro de morte começa a crescer

em nossa casa. Minha mãe voltou a chorar e agora descabelava-se. Meu avô continua

na esteira, cercado de flores, nenhum vizinho apareceu, pela vergonha do defunto

perneta que obriga minha mãe a esconder a morte. As moscas varejeiras começam a

fechar o cerco; uma mancha esverdeada já aparece sobre a barriga do meu avô: a morte

fazia a sua parte. Novamente, andando a esmo, cheguei até o riacho, sentei na margem.

Do outro lado, vi Nassar, o mercador de peles, concentrado no seu banho, usando até

o sabonete dos chapéus azuis. Coração acelerado, atravessei o riacho pelo trecho mais

distante e cheio de árvores; dentre as roupas de Nassar puxei a sua perna de madeira,

esquerda, tal a do meu avô. Corri, o coração na garganta, a distender-me o pescoço.

Colocando a perna por dentro da roupa, na parte das costas, fingi uma outra alegria e

Pedi à minha mãe o papel que dava a garantia da perna de meu avô; ela me olhou,

olhos vermelhos de choro desesperado; agora, pura surpresa, pois não ouvira o

barulho da chegada do caminhão das pernas; não respondi, não sabia mesmo o que

dizer. Tirou o papel de um bolso, entregou-me, em chorosa desconfiança. Escondi a

perna atrás do depósito d’água,caminhei até o prédio dos chapéus azuis, entrei na

pequena sala de espera, um deles sorriu meio esquisito, olhando para o relógio. Falei

que estava doido por um dos chicletes de menta, chegados semana passada. Ele

levantou da cadeira, passou por um corredor, enquanto eu abria sua gaveta e carimbava

“ ENTREGUE. ONU “, no papel todo amassado. Recebi sorridente o chiclete

presente do tenente Jones, que fizera, sem saber, a grande ação de sua vida.


Conto de André Albuquerque