Manifesto do coletivo Pó de Poesia

O Poder da Poesia contra qualquer tipo de opressão
Que a Expressão Emocional vença.
E que o dia a dia seja uma grande possibilidade poética...
Se nascemos do pó, se ao morrer voltaremos do pó
Então queremos Renascer do pó da poesia
Queremos a beleza e a juventude do pó da poesia.
A poesia é pólvora. Explode!
O pó mágico da poesia transcende o senso comum.
Leva-nos para um outro mundo de criatividade, imaginação.
Para o desconhecido; o inatingível mundo das transgressões do amor
E da insondável vida...
Nosso tempo é o pó da ampulheta. Fugaz.
Como a palavra que escapa para formar o verso
O despretensioso verso...
Queremos desengavetar e sacudir o pó que esconde o poema...
Queremos o Pó da Poesia em todas as linguagens da Arte e da Cultura.
O Pó que cura.
Queremos ressignificar a palavra Pó.
O pó da metáfora da poesia.
A poesia em todos os poros.
A poesia na veia.


Creia.


A poesia pode.


(Ivone Landim)



domingo, 17 de junho de 2012

O farol


O velho Gaspar era o sujeito mais solitário do mundo, disso eu não tinha a menor dúvida. E o farol: convento e bordel da alma do cara. Viúvo aos sessenta anos, os filhos em debandada geral: aposentado, grana curta, reduzido a pentelhação obrigatória de fim de semana. E percebeu isso, percebeu sim. Surgiu faroleiro, ninguém sabe como nem por obra de que ou de quem; somente porque. Ei-lo , visto meio de lado.

Procurei e nunca encontrei quem tivesse feito concurso para faroleiro; mesmo na capitania, nunca reparei nisso. Faróis são feito elefantes, grandes e em extinção. Vi na TV, outro dia, um farol removido sobre trilhos de sua posição original, num país da Europa; bizarro demais, o troço andou uns cem metros em cima de uma parafernália de eixos, molas, macacos hidráulicos, o escambau. Atingida a distancia segura da falésia, (é, ele estava quase despencando lá de cima) foi reinstalado - espero que tenha sido assim mesmo. Então, farol é um troço cheio de nove horas, não é mesmo?

Imagino que viagens o Gaspar fez de seu farol, olhando aquele mundo sempre velho e sempre diferente, as passagens dos navios; com o tempo talvez fizesse algum tipo de amizade com as embarcações; com as tripulações, duvido, mesmo se pudesse. Prezava muito sua solidão. Não parecia esperar nada do mundo nem de ninguém. Dizia que seus salários se escondiam no fundo das gavetas, para não ser vistos. Bobagem. Que necessidades teria ele? Vez por outra recebia uma inspeção da capitania dos portos e os caras nunca reclamaram lhufas de nada: tudo certo, limpo, espanado, arrumado, nenhum barco perdido ou à deriva na área do coroa. E tinha sorte.

Ele devia saber mesmo das coisas, ter aquela inteligência alimentada pelo lado animal e peixe, que vai assumindo a pessoa que mergulha inteira naquilo tudo. E ele mergulhou, ah, se mergulhou! A essa altura vocês devem estar se perguntando quem sou eu, deitando toda essa falação sobre Gaspar e o farol da Prainha. Chamem–me Ubiratan,
do jeito daquele cara da baleia branca, que também pedia chamem-me, mesmo nessa história mais simplesinha, mais pra golfinho que baleia. Uma vez por mês eu levava suprimentos para o farol e para o velho. Papeávamos um bocado, conferíamos o material enviado e partilhávamos uma cachaça do Rio Grande do Norte, que sabe Deus como ia parar ali, naquele fim de mundo, tão gostosa que imaginei-a um grande vinho que tivesse decaído, feito anjo, reencarnando ou reliquidificando (pouco importa) feito cachaça; quando falei isso pra ele, o velhote riu um riso amarelo de nicotina e alcatrão, combinando com o amarelo dos dedos e disse que vinho era vinho e cachaça era cachaça e que um troço chamado de metempsicose não se aplicava às bebidas, que tinham um espírito próprio.

Perguntei-lhe se já fora psiquiatra, ele riu de novo, um riso de enfisema e engraçado ao mesmo tempo, pois parecia sair da barriga dele, feito um boneco de borracha, quando você fura ele e fica apertando, sabe? Não me diga que nunca teve um brinquedo de borracha, que eu digo que você não vale o que o gato enterra e que não teve infância ou qualquer coisa que lembre que você passou pela infância e não viu. Entre uma tossida e outra, zoou com minha cara, dizendo que nossa conversa, tava parecendo um diálogo dos irmãos Marx: gente da qual nunca ouvi falar; já me bastava o cara barbudo que escreveu a bíblia comunista.

Aquela história toda de metempsicose era meio esquisita; talvez a solidão tivesse aloprado Gaspar; mas não parecia, falou-me que metempsicose não tinha nada a ver com loucura e sim com a transmigração da alma (outro calo no meu cérebro)... olhei pra cara dele, enrugada, engelhada num engelhamento bonito, que passava uma moral estranha para as pessoas, quero dizer, uma moral meio mortal, feito a dos bruxos, mas Gaspar era só um faroleiro que o GPS estava quase pra aposentar. Virou outro copinho daquela aguardente e ficou a olhar pro horizonte, sem barcos ou navios, só água e algumas gaivotas. A nicotina brilhante nas unhas fazia-o parecer nascido daquele jeito, com aquelas unhas amarelo–verniz. Falei pra ele e ele riu, agora só da boca pra fora, um riso simples, raso. Parecia vestir a mesma roupa todos os dias ou melhor, não sei se ele vestia aquele jeans e aquela camisa de gola rolê que lembrava os cantores da jovem guarda-sacumequié: velhas tardes de domingo, etecetera, etecetera, apenas para receber os suprimentos ; espécie de traje alinhado, sei lá. Uma vez, tiramos uma foto juntos, com o mirante do farol ao fundo e dei pra ele, que colou na porta da geladeira, onde guardava a cachaça. Desconfio que os cigarros eram seu referencial interno de tempo; quase sempre meia hora entre um e outro; não usava relógio além daquele do farol. E aquela cicatriz no peito, que ele atribuía a uma facada, rindo e olhando minha cara incrédula; sentia-me incapaz de imaginá-lo esfaqueado, simplesmente por falta de alguém suficientemente louco ou blasé para fazê-lo. Isso, na única ocasião em que o ouvi queixar-se do calor e despir a camisa, ali na Prainha.

Os olhos azuis do cara ás vezes mudavam de cor quando ele descrevia as coisas que já tinham pintado na sua área, a maioria bobagens, golfinhos mortos que encalharam nos escolhos ou de quando um barco vazio espatifou-se contra as pedras do seu pequeno reino. Imagino zilhões de neurônios zumbindo na imaginação dele e coisa e tal. Raro o amor da solidão pelo solitário, pensei. O sujeito é meio que escolhido por ela, num jogo complicado de afinidades e desafinidades. Ele nunca falava da família; o que eu sabia, era pelo pessoal de terra, da capitania, que tinha a ficha dele e parecia aproveitar a chance de ter o que seria um tipo doido manso, inteligente, que dava conta do recado, vivendo a vida sobre um farol de escolhos, escutando o resto da vida o barulho do mar e limpando cocô de gaivota das redondezas e jogando no mar , como se alimentasse aquela criatura líquida que um dia abandonaria antes que o mar o percebesse já distante e solitário de outro jeito, de outra forma e com sede de outro lugar, não mais farol.

Outro dia, convidou-me a entrar no seu quarto durante uma conversa sobre mapas; meu Deus: uma figura enorme e redonda na parede, segundo ele, uma mandala; uma porrada de livros antigos, muito manuseados, pareciam coisa comprada em sebo chinfrim, dezenas de reproduções de antiqüíssimas cartas de navegação e mapas, muitos mapas pelas paredes, uma incrível carta de navegação atribuída a Marco Pólo; mostrou–me o Diário de Viagem de um Filósofo, de um tal Conde Von Keyserling, do qual nunca ouvi falar (ia dizer–lhe isso, mas lembrei que nunca fui muito bom com livros nem eles comigo), afirmando que dar a volta ao mundo era a melhor forma de conhecer-se a si mesmo. Gaspar tinha o corpo no mar e a cabeça nas nuvens, lendo aquelas coisas, ali naquela solidão azul, falando da necessidade do homem de se escutar, de resgatar o que tinha dissipado do Eu ao longo do caminho da vida. Tempo para ouvir a si mesmo e para ouvir o mundo. Gaspar lembrava alguém a quem o mundo devia muita coisa, muita alegria, muita tristeza, muita paz, muito pesar, tudo zerado na cinza do dia a dia; o homem sem cor que ao perceber a falta de cor, resolveu ficar sozinho para absorver o mundo e absorver-se nele. Passaram–se anos, ficamos amigos, na medida em que era possível alguém sentir–se amigo de figura tão estranha e admirável.

Lembro de sua despedida, seu olhar líquido, o sorriso benfazejo, mochila às costas, entrou na minha sala e fez um arremedo engraçado de continência, levando dois dedos à testa; falou-me que sua missão estava cumprida, perguntei–lhe para onde ia, respondeu-me não saber ainda. Seguiu em frente, batendo levemente com o punho nas paredes do corredor, após um abraço de despedida distraído e fugaz, feito ele.

Uma tarde, Flavinha, da Tesouraria, mostrou-me numa revista aberta, uma foto do Gaspar; o texto informava dos cem anos do nascimento do escritor Samuel Beckett. Perguntou–me se não era o Gaspar. Gelei da cabeça aos pés: a mesma camisa de gola rolê, a calça jeans que parecia saída de uma garrafa; li a reportagem, esbarrei no relato da facada (agressor desconhecido,em Paris ,1938, afirmava a revista) e respondi que não, era apenas uma incrível e notável semelhança. Gaspar nunca esperou nada ou ninguém, nem mesmo Godot. Ela riu feito uma doida e beijou-me entre os olhos.


Conto de André Albuquerque

dois dedos e meio de segundos...


o vento do secador
afastava o perfume da nuca
antes de sair pela janela
o hidratante ignorando
o brilho da lua correndo na pele

o olhar intermediário
atravessou o espelho sem parar

súbita e suavemente
a sombra pairou sobre o carpete
a caminho da roupa
saiu pela porta e foi até a rua

minguando voce num rastro de saudades
deixou seu coração raso
e o mundo (jaz)
parece não respirar...



Poema de Vânia Lopez