Manifesto do coletivo Pó de Poesia

O Poder da Poesia contra qualquer tipo de opressão
Que a Expressão Emocional vença.
E que o dia a dia seja uma grande possibilidade poética...
Se nascemos do pó, se ao morrer voltaremos do pó
Então queremos Renascer do pó da poesia
Queremos a beleza e a juventude do pó da poesia.
A poesia é pólvora. Explode!
O pó mágico da poesia transcende o senso comum.
Leva-nos para um outro mundo de criatividade, imaginação.
Para o desconhecido; o inatingível mundo das transgressões do amor
E da insondável vida...
Nosso tempo é o pó da ampulheta. Fugaz.
Como a palavra que escapa para formar o verso
O despretensioso verso...
Queremos desengavetar e sacudir o pó que esconde o poema...
Queremos o Pó da Poesia em todas as linguagens da Arte e da Cultura.
O Pó que cura.
Queremos ressignificar a palavra Pó.
O pó da metáfora da poesia.
A poesia em todos os poros.
A poesia na veia.


Creia.


A poesia pode.


(Ivone Landim)



quinta-feira, 28 de junho de 2012

carcohas, bicicletas & biplanos - 21

O homem escreve alguns poemas e por isso chamam-no poeta. Mas nem sempre poeta é um elogio. O homem levanta-se e bebe um copo de água. Prepara a papa cérelac para a filha e não é preciso acordá-la porque já brinca no quarto. É sábado e a mãe foi trabalhar. O homem está cansado. Liga a máquina de café e vê um pouco de televisão, enquanto come o seu nestum de mel. Aparece a filha e dá-lhe um beijo. Pede para ver certo programa gravado. O homem procura-o na box e o programa entretêm a menina enquanto come no sofá. O homem levanta-se e arruma uns papéis. Relembra a semana louca que teve. Um feriado municipal a meio. Um corte de electricidade na véspera do feriado por levar ao limite o pagamento duma factura. O corte da televisão, televisão e telefone na véspera por falta de pagamento. Restabelecer tudo em tempo recorde foi uma loucura, principalmente sem dinheiro. Ajuntou uns documentos e avisos e talões de multibanco numa pilha a um canto da mesa da sala e apeteceu-lhe pegar-lhes fogo. Levou o prato vazio com vestígios de papa láctea e colocou-a na máquina de lavar louça. Uma pastilha e ligou a máquina. Ajeitou a cozinha e deu um ultimato de tempo para dar banho à filha. Sentou-se novamente no sofá enquanto bebe o café. Vê uma série gravada sobre um pai de família desempregado e alcoólico e os seus cinco filhos num caos melancólico e às vezes feliz. Prepara o banho a roupa e pega na filha para a pôr na banheira. Fazem graças com imitações de filmes e dá-lhe banho. Seca-a, veste-a e seca-lhe o cabelo. Promete que a leva a um parque arborizado nas redondezas. A filha vai brincar para o quarto. O homem faz as camas. Aspira o chão. Arruma os brinquedos, transferindo-os da sala, do corredor para o quarto da filha. Escolhe a roupa e toma banho. Faz a barba. A miúda serve-se de um iogurte com cereais. Ele bebe mais um café e uma pequena torrada.
Vamos ao jardim, a menina calça-se e põe o seu chapéu de sempre, escolha dela. Saem. Caminham na rua até ao seu fim, atravessam uma parte de mato e uma avenida movimentada. O homem antes de atravessar a estrada, testa mais uma vez com a filha as regras de se atravessar uma estrada em segurança. A menina age como qualquer criança com o seu foco no jardim e os seus estímulos. Não liga nada ao seu pai. Mas o homem sabe que a repetição é amiga da retenção. Sucedeu assim com ele e com o seu próprio pai e irá suceder com a geração seguinte. Atravessam um parque de estacionamento sem carros junto ao campo de ténis, um pequeno lago onde a pequena descobriu um sapo preto num destes dias, o campo de futebol cheio de gritos e chutos, a zona dos escorregas e balouços. A menina fez logo uma amiga e brincaram por uma boa hora inventando novas formas de explorar um simples e monótono escorrega. O homem refugiou-se numa das sombras vigiando-a e cumprimentou um velho conhecido que passava na relva lá ao fundo. De vez em quando semicerrava os olhos e escutava os sons, isolando-os do resto que observava. Pássaros, gritos de crianças, pais que dão ordens como treinadores, automóveis e mais pássaros.
Foi difícil arrancar a miúda do parque. Não quis ir ver os animais. É realmente uma chatice ver patos, galinhas, cabras, uma vaca, dois burros, um cavalo, dois galos e um gato, da cerca sem lhes passar a mão por cima. Já passou da hora de entrar no recinto dos animais. É hora de voltar. O sol aperta. A filha está cansada. Atravessam uma área de relva e a avenida e entram num pequeno supermercado. Compram batatas, leite, massa e salsichas. O pai dá o dinheiro à filha e ela paga. Confere o troco e aceita. Dá as boas tardes e sobem uma rampa para o prédio. A miúda abre a porta do prédio lembrando-se do código da porta com destreza e sobem no elevador até ao último andar.
Vai lavar as mãos e brinca um pouco que o pai vai fazer o almoço. A menina liga a música no seu quarto. O homem abre uma cerveja e começa num bailado de tachos e louça digno de Igor Stravinsky. Como um poema de meio-dia passado. O homem escreve alguns poemas e por isso costumam chamá-lo de poeta.

Jun. 12
 

carochas, bicicletas & biplanos - 20

Mofo. Quero o poema sóbrio, com um sorriso de tequila. Desperto como um dia que nasce, com o rio ao fundo. Sempre que decido não gastar dinheiro em comida quando posso gastar com poemas e enxovalhos de velhas carpideiras e falaciosas, que me deitam olhares de coruja e entardecer, quero assim o poema, solto e mexicano. Como uma balada ébria de Dylan o que canta, não o que bebia e que morreu faz umas décadas. Esse era poeta de excepcionalidade. Quero o poema estendido e divagante, como uma melodia eterna, que não acaba porque não queremos. Como os dias que acabarão quando eles bem quiserem. No fundo quero que o poema contenha tudo, eu e tu e o que mais entre nós. Seja o mundo pequeno ou de avalanche, seja o todo uma mistura de todos ou apenas a mesma feira de questões de fundo. Querer esse espantoso começo como se deus se desenhasse a cada sonho. Cidades imaginárias, édens de dante em tons de azul e preguiça. Mas o poema são torres cinzentas de subúrbio, gotejam humidade nos cantos. Velhos deitados sussurram, uns aos outros, ouvem-se pelos canos, contam estórias antigas pois todas as histórias são de ontem e morrem gritando indignidades. O poema sofre assim mas respira tudo isso como se fosse um aspirador metafísico.

Jun. 12

Autor: Carlos Teixeira Luís

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terça-feira, 26 de junho de 2012

carochas, bicicletas & biplanos - 19

Há poetas que nos fascinam. WISŁAWA SZYMBORSKA (1923-2012) é uma delas. Pela sua postura de luta por uma espécie de justiça justa para todos. E pelo seu recatado isolamento. Poeta que não aparece. Existe. É. Ser já custa tanto. Aparecer é marketing e marketing é publicidade. Publicidade serve para criar necessidades em vez de desejos para que se comprem produtos. Um poeta nunca é um produto. Mas tem de ser produto para vender. Felizmente a poesia não vende, a não ser a poesia de… bem, não vamos por aí.
Um exemplo desta poesia. Um poema da poeta - Nobel da Literatura de 1996. Um mundo mais pobre, sem dúvida mais pobre, pobre também o lugar comum da expressão mas a sua poesia dança com uma certa saudade de quem existe para lá da sua existência física. A poesia como árvore plantada no nosso peito. Uma metáfora para quem não abusava delas. Uma poesia de observação, ironia e simplicidade, ou nem por isso.

“EXEMPLO

Um vendaval
despojou todas as folhas das árvores ontem à noite
com a excepção de uma folha
deixada
a baloiçar sozinha num ramo nu.

Com este exemplo
a Violência demonstra
que sim, senhor –
gosta da sua piadinha de vez em quando.”

Lamento a repetição para quem não gosta de vira o disco e toca o mesmo. Eu repito, tenho esta necessidade, para observar melhor. Este poema foi traduzido por um dos autores do blogue: Poesia & Lda, ambos poetas de excepção. João Luís Barreto Guimarães e Jorge Sousa Braga, médicos de profissão e poetas com obra editada, amantes da arte da palavra polida, crime não conhecer. Quando publiquei no Luso Poemas esta citação, recebi este comentário que me sensibilizou (a propósito do poema da poeta polaca). Republico-o:

“Querido amigo,
compartilho da sua dor pela morte de Wisława Szymborska. Hoje, o meu quarto também parece mais escuro, pois esta grande poeta morreu. Os grandes poetas são assim: acendem luzes iluminando cantos escuros da nossa alma. Nas semanas passadas, eu publiquei aqui no Luso 4 poemas de Wisława Szymborska (Nada acontece duas vezes, Amor à primeira vista, As três palavras mais estranhas, Gato em apartamento vazio). A sua poesia vai viver para sempre.
Um abraço,
Manuela”

(Jun. 12)
Autor: Carlos Teixeira Luís

sábado, 23 de junho de 2012

...moço bonito

você é tão adorável que quebra meu coração por tudo e por nada, me encanta a tristeza que se vê em seus olhos às vezes, responde a uma pergunta “sem palavras” dentro de mim, possuí um encanto atrevido como se enraizasse o coração ao meu. me faz sentir rápida por um momento... resumindo o silencio na música do vento em seus cabelos. se encaixa em todas as vidas... essa fé rouca apaga todas as luzes da alma, ao cair da noite deixa só luar de seus olhos acesa e o modo que se move por meu peito num jeito seu de sorrir... moço bonito

Autor: Vânia Lopez

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quinta-feira, 21 de junho de 2012

é tudo mentira... ou sim os dois

contornar a saia com um verso
na caneta só palavra
deixar a alma passar cheia de capítulos
no instante que não falta nada
manter o coração inocente
ser feliz aos poucos
entre o chá e o jantar
desviar das nossas roupas juntas
enfrentar o céu e o inferno
(nos olhos) o mesmo endereço
uma cor que ruge aparecendo na boca
invadir seu maço de cigarros
oferecer preço ao silencio
despir o sorriso no velório do teu eu
orar em outro idioma
comentar o fim da novela
diante do céu abandonar meu corpo
sem hora marcada
aceitar uma carona sem pressa de voltar
grávida de lápis, pincéis e tesouras
ser de me imaginar...

Poema de Vânia Lopez

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carochas, bicicletas & biplanos - 18

Estórias (antigas e esquecidas) ou histórias cuja banalidade dos dias seja reconhecida? Há uma ideia que sai viva da ideia por detrás destes blogues que terminei em 2010, uma ferramenta para mostrar as pequenas histórias que me vão surgindo por entre os dedos das mãos.

E agora:

(Novas) Histórias do Deserto by Carlos Teixeira Luís

Histórias do deserto, porquê?

Talvez tivesse uns 19 anos na altura, trabalhava num segundo andar numa sala nos fundos dum andar com escritórios onde havia uma janela para um canto na Praça dos Restauradores em Lisboa. A vista não era muito nobre, via-se a caca dos pombos nas janelas fechadas dum velho hotel, caca dura como cimento de décadas onde os pombos faziam inclusive os seus ninhos. Esse hotel histórico veio a ser restaurado e a imagem suja e decadente dos pobres pombos foi anulada mas não da memória. Foi a olhar por essa janela fechada que nunca se abria por causa do som ensurdecedor do trânsito e da curiosidade ágil dos mesmos pombos que ia inventando histórias para não enlouquecer. Trabalhava numa espécie de depósito duma multinacional de óptica ali perto da baixa de Lisboa, onde o meu trabalho consistia em atender telefones, gerir o stock de lentes oftálmicas e fazer colorações em lentes graduadas para óculos de sol. Colorir lentes era um trabalho estranho, rudimentar e repetitivo. Mas era bom neste tipo de serviço, sustentado por um pequeno rádio e leitor de cassetes onde ouvia sem parar a minha escolha musical que me levava o espírito longe dali. Por vezes, lia às escondidas, quando fazia os degradés que consistiam em segurar as lentes numas pinças de aço e com um movimento calculado do pulso, mergulhá-las numa solução de água e químico com cor, numa das tinas de metal aquecidas a óleo. Respirar aqueles fumos diariamente durante 8 a 12 horas deixou uma marca na minha saúde. Lia e fazia isso ao mesmo tempo, escondendo o livro assim que chegava alguém. Trabalhava incansavelmente ultrapassando todas as dificuldades, nunca dizendo não a qualquer desafio. Ficava até às dez da noite, quando o trabalho apertava, não recebendo por isso. Suando as estopinhas. E sonhando acordado. Com histórias do deserto. Metáfora profunda duma condição social e pessoal.

Logicamente um tempo de imensa e profunda solidão e desencanto. Que não tinha nada que ver com a falta de gente à minha volta. Mas uma solidão melancólica que vem de dentro, sem aviso. Soube-o mais tarde, sem remédio.

Jun. 12

 
Autor: Carlos Teixeira Luís

carochas, bicicletas & biplanos - 17

Um gajo com óculos. Em 1935 morre Fernando Pessoa conhecido por usar chapéu preto e usar óculos. Além disso escreveu textos estranhos geniais e até poemas. Nesse ano nasce um ser que mais tarde se veio a chamar Woody Allen, cara de fuinha, faz filmes embora tenha começado como humorista. Bem nunca deixou de o ser. Em 1966 aparece como actor no filme What’s Up, Tiger Lily? Uma película ranhosa mas foi a primeira de muitas em que parece no seu papel de cabeludo e careca e um gajo com óculos. Nunca passou de um gajo com óculos, genial, cineasta e escritor de diálogos. Nesse mesmo ano, em 1966 nasço na maternidade alfredo da costa pelas 12 horas, dum dia 12 e berro logo um solo de free jazz demolidor, segundo constou quem lá esteve. Sim na maternidade que o governo aprovou fechar nos seus esforços de acabar com a memória colectiva não vá o povo servir-se dela para se lembrar de coisas que repetidamente lhe fizeram para seu prejuízo. E também para vender o edifício ou o terreno a preço de ouro, diamante e petróleo, por metro quadrado. Ah tinha nascido não é e hoje não passo dum gajo com óculos, que acabou de escrever isto provavelmente para meu prejuízo também. Sendo que escrevendo se regista o que outro poderá ler, quem sabe também um gajo com óculos, ministro, policia, padre ou vagabundo, sendo que este último não passará por um qualquer gajo com óculos provavelmente não os usará e míope passará por bêbedo. Sendo que este texto é uma forma louca, insensata mas divertida de me pôr no meio dum genial cineasta e do poeta português menos português e mais português por isso. Talvez o melhor escritor de toda a portugalidade e língua que Camões também usou. Tudo está lá. Ou quase tudo. E usava óculos.

Maio - Junho 12
 

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Presente

Há uma noite alta dentro de mim. E dizem que as noites são portais mágicos que nos elevam a condição de encantados. Poderia hoje querer brincar com o tempo. Voltar a ser criança, ir mais além da história. Mas hoje, aqui ouvindo o vento que já vem lá fora, prenunciando que na sua passagem, sempre alguma coisa leva - me adianto sujando as veste, as mãos, lambuzando meu cabelo e a sola dos pés, deixarei que os poros se embriaguem com essa poesia solitária.
Farei desse tinteiro negro, uma caixa de pandora em que mergulharei a alma para que transborde palavras como big bang em tempo de criação.
Serei sim, a pena fagueira e insistente que marca o papel em branco, borrões do nosso amor, como se estivéssemos aqui, agora, maculando a alvura dos lençóis com nossas sagradas luxúrias.
E quando o vento transpassar as cortinas dessa janela entreaberta que é o nosso passado, fará tremular mais uma vez sobre a mesa em que adormeço as linhas - curvas e traços paralelos - memória que lhe peço, leve, leve sim, mas não ouse tentar apagar!

Autor: Lápis sem ponta

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Paideia

Buscar-me nas doutrinas renegadas,
Infensas a argumentos que somente
Defraudam quem só pensa diferente
Das lápides por muitos confessadas;

Querer-me libertado das julgadas
Verdades que sustentam o Ocidente
Inteiro, como um fardo, a fazer frente
Contra tantas Histórias rejeitadas,

É a forma de encontrar a alteridade,
Um outro que de mim resta proscrito,
Anátema, revel, um ser maldito,

Despido de qualquer moralidade
Que só condena todos, sem medida,
Ao logro que encarquilha a nossa vida.


Felipe Mendonça -
Todos os direitos reservados.

carochas, bicicletas & biplanos - 16

Teoria do Capital Feliz. Um euro por sorriso. Um euro por aperto de mão. Todo o acto médico é gratuito e voluntário. Um euro por cada dia de puro ensino e aprendizagem. Toda a educação escolar é gratuita. Um euro por acto de bondade arredondado com generosidade. Todo o acto cívico é gratuito e voluntário. Um euro por cada político que deixa de o ser e passa a ter uma outra função na sociedade. Um euro por cada vez que se deixa de utilizar a palavra: política no contexto em que poderia ser utilizada. Um euro por poema. Um euro por anedota construtiva. Um euro por um livro emprestado. Um euro por canção ouvida. Todo o objecto transaccionado é gratuito e voluntário. Um euro por homeless tirado da rua. Um euro por cada pobre que passa a ter uma casa, roupa e comida. Um euro por cada pessoa que passa a ter uma actividade feliz e útil. Toda a habitação, comida, roupa e energia é gratuita e de origem voluntária. Um euro por abraço. Um euro por cada acto de encorajamento. Todo o imposto é voluntário e sem valor determinado. Todo o trabalho comunitário é voluntário e não remunerado. Um euro por cada metro quadrado sem lixo na rua em que vivemos. Um euro por cada árvore plantada. Um euro por cada solução original sugerida por cada homem ou mulher de idade avançada. Um euro por cada lágrima. Um euro por cada suspiro. Todo o acto relacionado com a morte e funeral é gratuito e não comercializável. Um euro por cada acção de trabalho. Todo o trabalho contratado é voluntário e recompensado por acção e não por período de tempo. Um euro por cada ideia nova e de reconhecido benefício mútuo. Toda a utopia realizável é voluntária e sem remuneração. Um euro por cada leitura desta teoria.
02 Fev.

Falhamos. As nossas democracias falharam. Produzimos mais pobres e mais multimilionários. A utopia igualitária está condenada a falhar. Os poucos diferentes não deixam diferença nenhuma para os muitos iguais. O capital tornou-se o grande papão inquisidor dos nossos dias, que já não são nossos, pois foram vendidos, trocados e emprestados a taxas de juro elevadas. Tudo falhou e falha sem parar. Falhamos todos por ainda esperar que este sistema venha a funcionar. Olhamos ao espelho e já não nos vemos. E não sabemos mais o que fazer. Voltamos a Deus e nunca tivemos nada mais. Somos os mesmos mas sofrendo muito mais. Uma das consequências da consciência. Voltamos mas diferentes. Melhores?
Chegou a hora de dar. De perdoar para não falir. Para salvar. Trocar e dar em vez de vender ou comprar. E rir com prazer e gente, muita gente. Esta realidade assim destrói-nos.
Por isso inventei este capital feliz. Foi um momento e a ideia agradou-me. Fez-me feliz por um escasso momento.
19 Jun.

Autor: Carlos Teixeira Luís

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carochas, bicicletas & biplanos - 15

Oh, os poemas!... Há tanta coisa a dizer acerca dos poemas dos outros. O problema não são os poetas consagrados mas os amigos que fazem poemas. O que lhes dizemos? Como o dizer?
“- O teu poema é tão denso que não consigo lá entrar.” Por vezes é o que acontece, a densidade de uma vida num só poema. Um nevoeiro impenetrável. Um prodígio literário, mas inacessível. E por isso, inútil. Ninguém come um pão com a densidade de uma pedra.
“- O teu poema é tão mau que nem escrito por uma criança. Se uma criança o escrevesse pelo menos um pouco do seu maravilhoso mundo teria.” Um mundo naif verdadeiramente ingénuo e irreal. Fingir realidade com fantasia. Pretende-se dos poemas e dos poetas que sejam sábios a lidar com o impossível. Se não o são, para que servem?
“- Gostei do teu poema embora o não tivesse entendido mas os poemas não são para perceber, não é?” Um primeiro passo para um poema e um poeta entrar na nossa vida e deixar marca. Um poema só, não faz um poeta. Tudo pode acontecer a partir daqui, dar um passo em frente ou muitos para trás. Por vezes, um poema é muito, noutras vezes, nada.
“- Isto é um poema!?” Mas afinal o que é um poema? Reconhece-se e não se sabe porquê. Mas aprende-se a não saber.
“- Não percebi, um poema em prosa ou uma prosa poética? De toda a forma, cheio de bela linguagem.” Nada melhor que um poema cheio de bela prosa e até o contrário. Não há fronteiras. Há fronteiras. Mas não há fronteiras.
“- Gostei mas cheio de lugares comuns, metáforas belas mas muito usadas. Cheio de beleza mas muito dejá vu, entendes?” Entendo. Aqui o poema morre ou já vem nado-morto. É altura de desistir. Largar o poema à beira da estrada, para que os abutres o comam depressa.
“- Uma porcaria, desculpa!” Acabas de perder um amigo. E o mundo um poeta. O primeiro golpe é sempre incerto. Quantos maus poemas fez Camões até acertar? Os amigos das pessoas não são os melhores amigos dos poetas. Os poetas estão sós. Só assim sobrevivem.
“- Mais ou menos uma insignificância. Sem mensagem, sem mundo, sem gente dentro, confuso.” Um contra censo: se é confuso, alguma coisa contêm. Mesmo habitando um deserto.
“- Oh, os poemas que escreves! Penso cair num exagero mas escreves expressões tão ricas e belas que fazes avançar a Língua cem anos.” Assim como Herberto Helder. E nós, em divida com ele. Saldamo-la, lendo-o.
“- Tanto dia a dia e tanta melancolia. Fica registado os nossos piores momentos nas tuas palavras. Dói ler-te. Mas não deixamos de o fazer.” Uma grande crítica a um poema. Poesia desta lê-se e ouve-se em dezenas de bandas rock, mesmo que não saibam escrever. A catarse pura sempre alimentou a poesia. Enfurecendo-a. Matando-a. Mas pondo-a a mexer. Espécie de big bang criativo e não ocasional ou caótico, se é que isso existe.
“- Desculpa lá, sei que gostas de poemas de amor mas gostavas que alguém te dissesse ao ouvido o que acabaste de escrever? Gostarias de viver esse amor como o descreves? Ou fugirias a sete pés? Então, porque escreves sobre isso…” O amor essa forma de ódio. Um bom poema de amor parece sempre uma coisa fácil de fazer mas impossível de o concretizar nós próprios. Coisa de poeta a sério. Poema de postal para oferecer a quem está doente ou em qualquer outra ocasião tradicional isso sim está disponível ao homem que conduz o arado, a mim e a ti, a todos.
“- Faltou-te o fôlego a meio, não foi? O teu poema tem o ritmo de uma locomotiva endiabrada ou duma banda speed metal enlouquecida. Se não consegues manter o ritmo, tu que escreveste, como haverá o leitor de o fazer? Coloca-se a questão, porque fazer um poema que ninguém consegue ler até ao fim, porque tem uma síncope a meio? Mantem o ritmo elevado mas faz pontuadas pausas assim como numa canção. Podemos aqui aprender algo com o Howl do Ginsberg, eu sei que aquilo é difícil de digerir mas um portento de ritmo elevadíssimo.” Está tudo dito, ou não dito.
“- Chamas poema a isso? Eu chamo: uma nódoa. Lê-se como forma de a apagar e eliminar.” Assim se lê um poema ou um livro que queremos apagar da nossa memória futura, rápida e velozmente. E depois oferece o livro. A outro e não ao mesmo.
“- Oh, que poema tão rude e cheio de negatividade! Mas verdadeiro, é tudo verdade embora chutado na cara do leitor. Vai sobreviver, penso.” Pedaços de Bíblia na ponta dos nossos dedos. Diz lá que não queres, registar assim o teu mundo todo?
“- Nunca li um soneto tão belo. Métrica perfeita e cada palavra no sítio certo. Como conseguiste?” Como foi Shakespeare, Vasco Graça Moura ou Florbela Espanca?
“- Lançar tanto vernáculo sobre um texto é como estragar uma caldeirada com malaguetas a mais. Ninguém a vai comer. Lamento. Um pouco menos, por favor.” Ninguém é Bukowski excepto o próprio. Repetir aquilo é impossível e fica muito mal. Só ele sabia. Sorry!
“- Escreves sempre o mesmo poema. Mas cada vez melhor. Acho que nunca vou deixar de te ler.” Será um poeta? Um autor? Estima-o e não o adestres. Não pode haver melhor opinião.
“- Surpreendes-me sempre. Mas hoje não. Igual. Igual.” Injusto. Até Camões chateia em certos dias de chuva e soleira quente cá dentro.
“- O teu poema é um denso pomar com tanta árvore que para colher uma simples laranja cansa tanto que não voltamos a repetir. Poemas complicados mas descartáveis. Para se ler uma única vez e cansam que se fartam. Mais um pouco e deixarei de ler poesia. Qualquer poesia.” Vai e desiste. O valor do poema é que nos ensina a desistir e a voltar. E a desistir outra e outra vez. Ensina-nos a cair, e quem disse isto? Vai e pesquisa. Quem o disse tem mais para ensinar.
“- Poema negro como a morte. Difícil de esquecer. Uma estocada na alma.” Digamos que pensei em Poe. E em dezenas de seus discípulos. Todos de negro e nevoeiro. Dylan Thomas é uma negritude á parte.
“- Oh, Camões mais Camões! Socorro!...” O problema do nosso maior poeta é o que se faz com a sua poesia, sufocando-a e repetindo-a à exaustão, quer para fins políticos ou publicitários. E ele, bardo incorrigível a tudo sobrevive. Mas dói a forma como é utilizado.
“- Oh, Florbela Espanca mais Florbela Espanca! Socorro!... Não posso ficar com uma só, a original?” Aprende-se a falar mal dela e aprende-se a imitar o que é impossível às centenas. Ai se ela soubesse a horda de seguidores, neste caso de seguidoras, era poetisa para fazer um belo soneto acerca disso. Acredito que era.
“- O teu poema transtornou-me. Marcou-me. Vou ter de o ler várias vezes. Posso demorar anos.” Talvez Poe outra vez. Dylan Thomas é outra coisa mas se calhar aplica-se também. Afinal em que ficamos?
“- Não consigo classificar o que escreveste. E não consigo parar de ler.” Um passo para outro passo e a seguir mais um passo e fica-nos a poesia entranhada, sem sabermos porquê.
“- …” O silêncio diz tanto.
“- Perfeito no sentido de que me fez escrever poemas. Se um dia escrever um poema que seja, como resposta ao teu poema, então não me importo que me chamem isso: escrevinhador de poemas ou…” António Ramos Rosa e o seu funcionário cansado, faz-nos pesar a alma, lá no escritório, lá na firma cheia de Kafkas.
“- Nunca li um poema como este. Nunca.” Nunca. Nunca.
“- Um poema tão longo quanto o cosmos. A tua respiração faz pensar numa qualquer ideia de eternidade. Como um solo de John Coltrane.” São poucos os poetas com esta respiração longa e feliz, intensa e incansável. Fora os poemas de amor, Neruda é um poeta assim. E por isso vive para sempre. Mas não dá para ler com Coltrane como fundo. Poema em cima de poema é uma espécie de caldeirada picante de mais para ser ingerida. A menos que se separem os diversos elementos e o vinho seja bom.
“- Eu queria viver esse teu haikai. E ficava lá.” Um bom haicai é um lugar para se viver a vida toda. E nunca mais o abandonar. É ou não é, mestre Bashô?
“- Poesia, mas o que é poesia.” Lamento mas não tenho opinião a dar. Ignorante - eu sou.
(Jan. – Jun. 12)

Autor: Carlos Teixeira Luís

segunda-feira, 18 de junho de 2012

carochas, bicicletas & biplanos - 14

Faz um poema. “Faz um poema.” Nada mais se pode dizer a um poeta. É inútil as recomendações, faz um poema disto e daquilo e que tenha isto e aqueloutro. Que faça sentido, seja bonito ou que se perca em divagações e surrealismos. Perfeitamente inútil. “Retira-lhe o desperdício e os floreados. O que fica?” Liberta o haikai que há em cada poema. “Retira-lhe o tema. O que fica?” Fica o haicai da própria essência. Não é o tema um condicionador do poema? Um defeito e uma fragilidade? “Retira-lhe a autoria. O que fica?” O poema da árvore, como podes dizer que és tu o autor e não a árvore diante de ti. “Espreme-o, deixa a essência – a poesia, a mensagem, se a houver, ou o momento, ou a ideia. O que fica? Espreme-o mais um pouco – algum suco sairá. Agora refina-o e purifica-o. Deita fora a escória, não a aproveites. O que fica?” Um novo haicai liberto de sílabas, como uma oliveira e a sua sombra. “Não sabes classificar o que fica? Óptimo. Fizeste poesia.” Não é a poesia o indizível dentro das coisas. Um dia o indizível torna-se discernível e claro. E termina o poema. Passa a ser outra coisa. “Agora dá a ler. Como reagem? Gostam? Estranham? Conseguem ler até ao fim, agarrados ao poema? Como se sentem os que leram? Estranhos? Com dúvidas e interrogações?” Óptimo amigo. Espalhaste poema no espírito alheio. “Desconfia dos que apenas gostaram.” Foge, diria. “Não perceberam e não lhes merece atenção suficiente para se esforçarem a perceber.” Foge dos que fogem do poema, desistindo poema a poema. “E um poema não se percebe. Apenas acende qualquer coisa em nós que nem sempre identificamos.” Chamada coisa que se acende. Se tivesse nome não faria poema. “Para contar uma história escreve um romance. Para contar um episódio ou um momento escreve um conto.” “Um poema é mais e é menos do que isso. Escrevemos um poema para descobrir o que queremos. E vamos sempre escavando mesmo que não encontrando nada.” Simplista a ideia de que o poema nos serve. Pode ser substituído por qualquer outra coisa. “Apenas temos de continuar a escavar. Um poema faz-se enquanto se trabalha e por vezes arduamente. E escreve-se depois. É mais digno para o poema assim.” Viver o poema, antes. Assassina-lo e enterra-lo. Desde que gere os seguintes. “E agora? Bem, agora, meu amigo, faz o teu próprio poema e dá-me a ler, se achares por bem.” Ou faz outra coisa qualquer.
12 Jan. – 18 Jun.


Autor: Carlos Teixeira Luís

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carochas, bicicletas & biplanos - 13

Um Pensamento Repentino e Libertador de Kjell Askildsen. Autor norueguês, Kjell Askildsen é considerado um mestre na narrativa breve ou conto. Este livro de 1987 ganhou o Prémio Riksmal, no seu país. O livro é uma recolha de alguns dos seus contos inclusive um dos seus primeiros publicados: “A partir de agora acompanho-te a casa”, editado em livro com o mesmo título nos anos cinquenta. Gostei de particularmente dos últimos 4 contos: “Ingrid Langbakke”, “Carl Lange”, “Últimas notas de Thomas F. para o público em geral” e “Um repentino pensamento libertador”. Reflexões sobre a solidão, a velhice, a aproximação da morte, os estranhos e perdidos relacionamentos entre pessoas, no casamento e no dia após dia. Gente que se cruza e gente que vive em conjunto mas não sabe nem consegue ser feliz em comunidade ou em família. Um grande escritor. Com um sentido de humor refinado, negro e irónico. Este livro comprado em troca de três almoços que não comi, já tem uma pequena lista de amigos à espera de um empréstimo para o lerem. Acho que farão muito bem. Boa leitura é o que lhes desejo. E vida longa.
23 Jan.

Os desenhos de Ramos Rosa trazem palavras descobertas na raiz do traço. Vão-se descobrindo a cada curva como uma lenta estrada de província. Às vezes estou no Alentejo e faz sol. Noutras vezes não sei onde estou e faz sol. Estar não me parece o verbo adequado para tanta inquietação mas é um verbo como outro qualquer. Senhor Ramos Rosa, as suas figuras femininas são tão divinas e suaves e doces. Como o seu sol, os seus desenhos, estimado senhor, deitam luz de sorriso, uma fonte que não incendeia mas enternece. Leva-me a colinas longe, muralhas, escarpas e dorsos de história. São tão belas as mãos, ágeis e corcéis de vento. Os desenhos de António Ramos Rosa, trazem pétalas deitadas com o perfume de brisa de um fim de tarde feliz.
01 Mar.



carochas, bicicletas & biplanos - 12

Quando nasceu o dia, já Eva tinha acordado. De repente, o paraíso pareceu-lhe um belo sítio para se estar. Mas por onde andava Adão? Serviu-se de um chá e enxotou o gato das pernas. Aproximou-se da janela e pensou que iria chover não tarda. Voltou a pôr a agulha no princípio do disco de Monk e sentou-se novamente do sofá. O gato voltou ao seu colo.
22 Fev.

Não tenho uma história para contar. Uma história que seja relevante e interessante. Só tenho uma história banal para ser vivida. E é tudo.
29 Fev.

Estou farto da teoria impossível que é repetida sempre que se anseia uma parca teoria. Da postura que é aceite e é tão feia. Da palavra política, era bom ouvir duas pessoas a conversar, apenas isso. Do homem que é mulher. Da criança que é mulher. Da mulher que parece criança. Do rapaz que é mulher. Do homem que é cão. Do cão que come mulheres e da razão que acompanha a violência e o contrário. Da estupidez da morte e da sua beleza. Estou farto duma série de coisas que não o são. Mas chateiam.
01 Mar.




[...e quando cortas o verso a meio


...
e quando cortas o verso a meio, as partículas
que o vento arrasta, partilham-se por entre as núvens

no ocaso silencioso,
insites nos barcos a arder na baía,
insistes nas vozes que assombram as sombras,
insistes nos sonhos que eu não vislumbro, que não os meus

quão exaltados pelas síncopes do olhar.

Tudo e nada, como se o desejo prevalecesse,
assustam-me as coisas que sinto [que insistem].

Quando colas o verso pelo meio escaqueiro-me ao tormento,

recolocas as palavras que se reordenam sem pensar,
sem espantos, sem espantalhos,

e nesse contentamento teu que se me apega,
perpetua-se o esquecimento, que cá já não me pode alterar.

E insistes nos barcos, nas vozes e nos sonhos,
que não os meus.

Perdoa-me,
se me perco pela rota das açucenas em flor,
ou que me esqueça de ti por este instante apenas

[que seja].

Poema de Ricardo Pocinho (Transversal)

domingo, 17 de junho de 2012

O farol


O velho Gaspar era o sujeito mais solitário do mundo, disso eu não tinha a menor dúvida. E o farol: convento e bordel da alma do cara. Viúvo aos sessenta anos, os filhos em debandada geral: aposentado, grana curta, reduzido a pentelhação obrigatória de fim de semana. E percebeu isso, percebeu sim. Surgiu faroleiro, ninguém sabe como nem por obra de que ou de quem; somente porque. Ei-lo , visto meio de lado.

Procurei e nunca encontrei quem tivesse feito concurso para faroleiro; mesmo na capitania, nunca reparei nisso. Faróis são feito elefantes, grandes e em extinção. Vi na TV, outro dia, um farol removido sobre trilhos de sua posição original, num país da Europa; bizarro demais, o troço andou uns cem metros em cima de uma parafernália de eixos, molas, macacos hidráulicos, o escambau. Atingida a distancia segura da falésia, (é, ele estava quase despencando lá de cima) foi reinstalado - espero que tenha sido assim mesmo. Então, farol é um troço cheio de nove horas, não é mesmo?

Imagino que viagens o Gaspar fez de seu farol, olhando aquele mundo sempre velho e sempre diferente, as passagens dos navios; com o tempo talvez fizesse algum tipo de amizade com as embarcações; com as tripulações, duvido, mesmo se pudesse. Prezava muito sua solidão. Não parecia esperar nada do mundo nem de ninguém. Dizia que seus salários se escondiam no fundo das gavetas, para não ser vistos. Bobagem. Que necessidades teria ele? Vez por outra recebia uma inspeção da capitania dos portos e os caras nunca reclamaram lhufas de nada: tudo certo, limpo, espanado, arrumado, nenhum barco perdido ou à deriva na área do coroa. E tinha sorte.

Ele devia saber mesmo das coisas, ter aquela inteligência alimentada pelo lado animal e peixe, que vai assumindo a pessoa que mergulha inteira naquilo tudo. E ele mergulhou, ah, se mergulhou! A essa altura vocês devem estar se perguntando quem sou eu, deitando toda essa falação sobre Gaspar e o farol da Prainha. Chamem–me Ubiratan,
do jeito daquele cara da baleia branca, que também pedia chamem-me, mesmo nessa história mais simplesinha, mais pra golfinho que baleia. Uma vez por mês eu levava suprimentos para o farol e para o velho. Papeávamos um bocado, conferíamos o material enviado e partilhávamos uma cachaça do Rio Grande do Norte, que sabe Deus como ia parar ali, naquele fim de mundo, tão gostosa que imaginei-a um grande vinho que tivesse decaído, feito anjo, reencarnando ou reliquidificando (pouco importa) feito cachaça; quando falei isso pra ele, o velhote riu um riso amarelo de nicotina e alcatrão, combinando com o amarelo dos dedos e disse que vinho era vinho e cachaça era cachaça e que um troço chamado de metempsicose não se aplicava às bebidas, que tinham um espírito próprio.

Perguntei-lhe se já fora psiquiatra, ele riu de novo, um riso de enfisema e engraçado ao mesmo tempo, pois parecia sair da barriga dele, feito um boneco de borracha, quando você fura ele e fica apertando, sabe? Não me diga que nunca teve um brinquedo de borracha, que eu digo que você não vale o que o gato enterra e que não teve infância ou qualquer coisa que lembre que você passou pela infância e não viu. Entre uma tossida e outra, zoou com minha cara, dizendo que nossa conversa, tava parecendo um diálogo dos irmãos Marx: gente da qual nunca ouvi falar; já me bastava o cara barbudo que escreveu a bíblia comunista.

Aquela história toda de metempsicose era meio esquisita; talvez a solidão tivesse aloprado Gaspar; mas não parecia, falou-me que metempsicose não tinha nada a ver com loucura e sim com a transmigração da alma (outro calo no meu cérebro)... olhei pra cara dele, enrugada, engelhada num engelhamento bonito, que passava uma moral estranha para as pessoas, quero dizer, uma moral meio mortal, feito a dos bruxos, mas Gaspar era só um faroleiro que o GPS estava quase pra aposentar. Virou outro copinho daquela aguardente e ficou a olhar pro horizonte, sem barcos ou navios, só água e algumas gaivotas. A nicotina brilhante nas unhas fazia-o parecer nascido daquele jeito, com aquelas unhas amarelo–verniz. Falei pra ele e ele riu, agora só da boca pra fora, um riso simples, raso. Parecia vestir a mesma roupa todos os dias ou melhor, não sei se ele vestia aquele jeans e aquela camisa de gola rolê que lembrava os cantores da jovem guarda-sacumequié: velhas tardes de domingo, etecetera, etecetera, apenas para receber os suprimentos ; espécie de traje alinhado, sei lá. Uma vez, tiramos uma foto juntos, com o mirante do farol ao fundo e dei pra ele, que colou na porta da geladeira, onde guardava a cachaça. Desconfio que os cigarros eram seu referencial interno de tempo; quase sempre meia hora entre um e outro; não usava relógio além daquele do farol. E aquela cicatriz no peito, que ele atribuía a uma facada, rindo e olhando minha cara incrédula; sentia-me incapaz de imaginá-lo esfaqueado, simplesmente por falta de alguém suficientemente louco ou blasé para fazê-lo. Isso, na única ocasião em que o ouvi queixar-se do calor e despir a camisa, ali na Prainha.

Os olhos azuis do cara ás vezes mudavam de cor quando ele descrevia as coisas que já tinham pintado na sua área, a maioria bobagens, golfinhos mortos que encalharam nos escolhos ou de quando um barco vazio espatifou-se contra as pedras do seu pequeno reino. Imagino zilhões de neurônios zumbindo na imaginação dele e coisa e tal. Raro o amor da solidão pelo solitário, pensei. O sujeito é meio que escolhido por ela, num jogo complicado de afinidades e desafinidades. Ele nunca falava da família; o que eu sabia, era pelo pessoal de terra, da capitania, que tinha a ficha dele e parecia aproveitar a chance de ter o que seria um tipo doido manso, inteligente, que dava conta do recado, vivendo a vida sobre um farol de escolhos, escutando o resto da vida o barulho do mar e limpando cocô de gaivota das redondezas e jogando no mar , como se alimentasse aquela criatura líquida que um dia abandonaria antes que o mar o percebesse já distante e solitário de outro jeito, de outra forma e com sede de outro lugar, não mais farol.

Outro dia, convidou-me a entrar no seu quarto durante uma conversa sobre mapas; meu Deus: uma figura enorme e redonda na parede, segundo ele, uma mandala; uma porrada de livros antigos, muito manuseados, pareciam coisa comprada em sebo chinfrim, dezenas de reproduções de antiqüíssimas cartas de navegação e mapas, muitos mapas pelas paredes, uma incrível carta de navegação atribuída a Marco Pólo; mostrou–me o Diário de Viagem de um Filósofo, de um tal Conde Von Keyserling, do qual nunca ouvi falar (ia dizer–lhe isso, mas lembrei que nunca fui muito bom com livros nem eles comigo), afirmando que dar a volta ao mundo era a melhor forma de conhecer-se a si mesmo. Gaspar tinha o corpo no mar e a cabeça nas nuvens, lendo aquelas coisas, ali naquela solidão azul, falando da necessidade do homem de se escutar, de resgatar o que tinha dissipado do Eu ao longo do caminho da vida. Tempo para ouvir a si mesmo e para ouvir o mundo. Gaspar lembrava alguém a quem o mundo devia muita coisa, muita alegria, muita tristeza, muita paz, muito pesar, tudo zerado na cinza do dia a dia; o homem sem cor que ao perceber a falta de cor, resolveu ficar sozinho para absorver o mundo e absorver-se nele. Passaram–se anos, ficamos amigos, na medida em que era possível alguém sentir–se amigo de figura tão estranha e admirável.

Lembro de sua despedida, seu olhar líquido, o sorriso benfazejo, mochila às costas, entrou na minha sala e fez um arremedo engraçado de continência, levando dois dedos à testa; falou-me que sua missão estava cumprida, perguntei–lhe para onde ia, respondeu-me não saber ainda. Seguiu em frente, batendo levemente com o punho nas paredes do corredor, após um abraço de despedida distraído e fugaz, feito ele.

Uma tarde, Flavinha, da Tesouraria, mostrou-me numa revista aberta, uma foto do Gaspar; o texto informava dos cem anos do nascimento do escritor Samuel Beckett. Perguntou–me se não era o Gaspar. Gelei da cabeça aos pés: a mesma camisa de gola rolê, a calça jeans que parecia saída de uma garrafa; li a reportagem, esbarrei no relato da facada (agressor desconhecido,em Paris ,1938, afirmava a revista) e respondi que não, era apenas uma incrível e notável semelhança. Gaspar nunca esperou nada ou ninguém, nem mesmo Godot. Ela riu feito uma doida e beijou-me entre os olhos.


Conto de André Albuquerque

dois dedos e meio de segundos...


o vento do secador
afastava o perfume da nuca
antes de sair pela janela
o hidratante ignorando
o brilho da lua correndo na pele

o olhar intermediário
atravessou o espelho sem parar

súbita e suavemente
a sombra pairou sobre o carpete
a caminho da roupa
saiu pela porta e foi até a rua

minguando voce num rastro de saudades
deixou seu coração raso
e o mundo (jaz)
parece não respirar...



Poema de Vânia Lopez

sábado, 16 de junho de 2012

[... do anti-verso que se exaspera



do anti-verso que se exaspera, como o alazão
puxado pelo freio, se quedam as palavras indomáveis,

mesmo as que carregam as cores,
mesmo as que carregam os sons,

e das nenhumas imagens que desejo, [consigo] visionar,
tropeço nos desassossegos,
nos recantos que ficam por preencher,
nas pedras angulares que nada sustêm, nem pós.

Explica-me os labirintos de mim por onde me perco,
explica-me o sorriso,
explica-me o inexplicável, por onde me desnovelei inda agora
nesta maré de sizígia que jamais vogará
pelo poema afora. Desnuda-me.

Adensam-se os cirros em círculos que envolvem os lábios
que imagino entreabertos,

confesso-te;

dormiria ao relento nos labirintos por onde me perco,
se as tuas mãos me escorassem.


Poema de Ricardo Pocinho (Transversal)

sexta-feira, 15 de junho de 2012

carochas, bicicletas & biplanos - 11


Alisei a barba e bati à porta. A bela holandesa veio abrir. Solicitei se podia dormir um pouco e comer alguma coisa. Precisava dum banho mas isso seria pedir muito. Perguntou-me como me chamava. Bem, Fred, tens ali um anexo onde podes fazer isso tudo e de manhã vais embora, não quero que assustes as crianças. Aceitei com muitos agradecimentos e a bela senhora de sardas e vestida como uma hippie antiga conduziu-me a um barracão com um automóvel lá dentro. Apontou-me uma casa de banho, uma espécie de estufa onde podia dormir e disse que já trazia comida. Perguntei se ela queria que eu fizesse algum trabalho ou limpeza como paga por aquela hospitalidade. Ela sorriu. Venho já. Entrei na estufa, uma espécie de sala com um sofá, candeeiro, móvel com livros e um aquecedor a gás. Nem sombras de plantas, apenas umas caixas num dos cantos. Do lado de fora da estufa um Ford Capri verde em excelente estado de pintura mas com os pneus em baixo. Não devia andar há muito tempo. Entrei na casa de banho, pequena, limpa, com um duche a um canto e muita luminosidade. Podia viver ali sem incomodar ninguém. Apenas não havia onde fazer comer. A linda holandesa dos seus bem conservados quarenta anos surgiu com umas calças, uma camisa aos quadrados de pescador, um par de sapatos de sola de borracha e uma grossa camisola. Disse que era do ex-marido e que me devia servir. Quer que lhe dê uma vista de olhos no carro, perguntei. Não anda há séculos, há aí ferramentas mas não vale a pena. Já lhe trago comida, pode ligar o aquecedor que a estufa é fria e já lhe trago umas mantas para o sofá. Agradeci tudo e entrei na casa de banho. Tomei um duche frio e vesti as roupas do ex-marido da mulher. Lavei com sabão as minhas roupas e pendurei-as pelo do Ford numa corda. De manhã estariam secas. A mulher apareceu com umas mantas e uma almofada. Foi lá dentro novamente e trouxe num tabuleiro duas fumegantes sandes com carne e duas garrafas de cerveja. Guardanapos e duas maçãs. Não sei como lhe agradecer, apenas queria um lugar para descansar. Sorriu e desejou-me uma boa noite. Comi uma das sandes de carne assada e bebi uma das cervejas. Abri o capô, comecei a limpar o motor. O óleo parecia estar bom. Enchi os pneus, tirei-lhe as teias de aranha. Limpei o filtro do ar, sacudindo-o. Dei um aperto a alguns tubos. Vi todos os níveis. Só faltava a chave para ver se o conseguia ligar. A roupa ia secando. A noite encheu de sombras todo aquele lugar. A estufa não era assim tão fria. Não liguei o aquecedor. Mexi nos livros. Tudo velharias. Descobri uma Bíblia e comecei a ler o livro de Job. Comi a outra sandes e a cerveja. Tapei-me com uma das mantas e uma simpática escuridão abateu-se-me sobre o meu corpo. Sonhei ou penso que sonhei com gatos, moinhos de vento e com um estranho personagem vestido de pirata que conduzia um Ford que ia mudando de modelo e de cor ao longo de planícies sabe Deus de que país. Acordei cedo com a explosão de luz e calor. Um gato malhado olhou-me e fugiu. Lavei a cara e reconheci os meus olhos. Doía-me o corpo. Juntei a roupa e arrumei-a na mochila. Fazia intenções de me ir. Arrumei o livro e ajeitei as coisas mais ou menos como estavam. Que horas seriam? A mulher surgiu e agradeceu o que fiz ao carro. É capaz de pegar ou a bateria está descarregada. Não interessa, quer tomar o pequeno-almoço lá dentro? Não será um abuso, não me sentirei bem, as crianças… Não tenho crianças, apenas disse isso por uma questão de segurança, mais um pouco e diria que era casada com um polícia mas pareceu-me boa pessoa. Entramos na cozinha, onde o gato comia da sua gamela e um agradável cheiro a café e ovos mexidos pairava. Qual é a sua história, porque anda por aí? Perguntou Eve apresentando-se, enquanto me servia café para uma chávena com figuras de um desenho animado qualquer.

23 Jan.



Autor: Carlos Teixeira Luís

carochas, bicicletas & biplanos - 10


O velho fundou uma banda de jazz. Na primeira jam session convidou um baterista e percussionista brasileiro, um contrabaixista português e um pianista americano. O contrabaixista despediu-se por confusão alcoólica, foi o seu argumento. O baterista vivia num mundo de ritmo próprio que os outros tentavam acompanhar. O pianista era louco o suficiente para aceitar todas as sugestões free. Mas esgotava-se e entrava em colapso. Saiu com um pesado esgotamento após duas únicas sessões de quatro a cinco horas cada. Foi substituído por um guitarrista do Mali. Mas os ritmos não acertavam com a percussão. O baterista não quis adaptar-se e o guitarrista foi emprestado a uma banda de world music. Entraram dois saxofonistas, alcoólicos e suaves, quase irmãos gémeos na abordagem dos temas mas lentos para o percussionista. O velho quis manter assim disfuncional e livre. Entrou novo contrabaixista com muita experiência, homem que nunca falava a não ser através do seu usado contrabaixo. Entendia-se com o baterista louco e colava as improvisações aos solos divagantes dos dois saxofonistas. Mas o velho queria um pianista. Nenhum dos que se apresentaram para fazer testes se encaixaram na secção rítmica. Apenas uma organista muito jovem e de ar angélico. Mas o som era excelente e viciante. O velho aceitou-a. A miúda, de apenas dezanove anos em certas faixas cantava o que deu ideias ao velho de ter uma vocalista. Entre os que surgiram ao anúncio, que foram muito poucos, só uma rapariga de grande porte, africana e de ar hip-hop se aventurava nos velhos standards de jazz que o grupo alterava. Fizeram um concerto memorável e louco. Depois cada um foi para o seu lado. O velho iniciou outra banda de jazz. Na primeira entrevista recebeu um famoso pianista desempregado. O velho ouviu por horas a fio. Mudou de ideias e decidiu gravar um disco mas precisava de um contrabaixista e de um baterista. Procurou e entrevistou milhentos músicos e escolheu o velho guitarrista do Mali. Ele aceitou tocar baixo e a usar uma caixa de ritmos. Fizeram um concerto brilhante e o grupo acabou por falecimento súbito do guitarrista, na noite pós-espectáculo. Após o funeral o velho iniciou os preparativos para uma nova banda, neste caso uma big band.

23 Jan.

Autor: Carlos Teixeira Luís

certidão de pele


façam bem amplo esse peito
e que os relógios parem de contar as horas
enquanto o coração passa pelo juízo final

façam esse peito engarrafar o vento
os dias que não são meus
e nele aguardem as chuvas esparsas

deixem as asas a ponto de tocar o céu
de tanto me afundar nesse leito

façam-me cair do ponto mais alto
e que nada interrompa esse solo

que eu não possa negá-lo
antes possuí-lo sob a pele febril
como gelo correndo nas veias...

façam esse peito com medo
no emaranhado de sua loucura
da profundeza do momento
sem zelo ou perguntas
peito é sujeito à certidão de pele.



Poema de Vânia Lopez

quinta-feira, 14 de junho de 2012

carochas, bicicletas & biplanos - 9


Um gato esperava por uma sombra no vão da escada. A casa tinha heras por todo o lado. Paredes cobertas de tijolo centenário. Um fumo suave e contínuo sai pela chaminé. Levanta-se vento e as folhas caídas no alpendre voam. O gato passa pelo espaço entre a porta e a ombreira como se fosse pecado no mundo dos gatos tocar na madeira ou na pedra e entra. A velha senhora atira a ponta do cigarro para um jarrão com areia. Entra em casa, puxando a gola do casaco mais para si. Dentro de casa, há um chá quente à sua espera e problemas com cadáveres para resolver. A noite abraçaria o bairro dentro de pouco tempo e a inspiração mais fértil. O gato ainda enfiou os bigodes fora da porta como que despedindo-se da tarde. A porta fechou-se.

10 Jan.

Ando triste. Vivo num país triste. As pessoas não são pessoas. Nem números são. Não existem umas para as outras. Tenho a certeza que se disser a um transeunte qualquer: - Tenho uma bomba potente, se não me der uma moeda, ela explode! A resposta seria: - Tenha paciência. Vai trabalhar! Qualquer ideia que possa ser dita: - Estou com fome. – Vou-me matar. – Vou matar alguém. A não ser: - Dá cá o dinheiro ou espeto-te esta faca de cozinha! A menos que vejam a faca, a resposta será: - Não me chateies! Deixa passar! Este país morreu e ainda não sabe disso. Vive uma crise monetária, económica e financeira. Mas a verdadeira crise de que sempre sofreu é de tristeza. Um povo triste. Não acredita em si. Mas que vai dar a volta. Com certeza. Mas vai sempre parar ao mesmo sítio. É sempre uma volta penosa de cento e oitenta graus. Fica-se apenas um pouco mais à frente. Melhor seria, romper a direito.
Por isso ando triste. Sou um desses que andam por aí. Tal e qual.

11 Jan.

Acho que já contei esta história. Eu e ele, parecido com um dos Ramones, o que canta, íamos a um apeadeiro ferroviário esperar o outro que vinha de Vialonga e apanhávamos um lento autocarro até à Encarnação, onde numa vivenda um afável ex-hippie alugava a cave e instrumentos para malta como nós fazer uns barulhos. Chamava-se a Harpa. Assim estava escrito no gradeamento de metal da porta de entrada. O Joey Ramone ficava com um baixo e berrava, sempre de cigarro ao canto das beiças. O de Vialonga, na bateria e eu a solar. Os solos eram longos e cheios de eco. A bateria demolidora.
- Lembras-te do filme Blue in the Face, em que aparece Lou Reed – alguém perguntou.
Algo se passa com esta memória, decorria os meados dos anos oitenta e o filme saiu em noventa e cinco. De toda a forma, teve vida curta a banda Outsiders Revolution Blues Band. Durou uma cassette gravada, algumas tardes e muitas canecas de cerveja.

11 Jan.




Autor: Carlos Teixeira Luís

quarta-feira, 13 de junho de 2012

[...e perco-me nesta terra tão de palavras



e perco-me nesta terra tão de palavras que as tormentas
fundearam,

pecado capital antes fosse,
seja-me em vendaval repentino, então,

que toquem as trompetas anunciando o fim,
como um fado negro sem comiseração, sem voz,

que o crepúsculo se refugie por entre nebulosas que pontificavam num céu, antes azul,
que os primeiros ondulares do mar se ombreiem, sem resistência.

Os destroços da madeira, antes seiva, debruam o areal,

rarefaça-se a dor,
as vozes jamais se alterarão.

Hoje sei, o quanto me amaste,
mesmo quando minha alma crepitava, qual sal no fogo,

acreditava ouvir o som de um piano algures
que me atormentava,

perco-me nesta terra tão de palavras jamais ditas,
enquanto estas minhas todas tormentas, fundeiam nenhures,

porque só hoje, sei,

[o quanto me amaste].




Poema de Ricardo Pocinho (Transversal)

terça-feira, 12 de junho de 2012

carochas, bicicletas & biplanos - 8


O homem encostou-se à parede de madeira da velha estação e morreu. Os últimos pensamentos foram um belo corpo de mulher a surgir dum nevoeiro citadino e um campo de batalha onde um dos corpos era o seu. Levava numa das mãos uns papéis sujos que se espalharam entre as folhas de erva.
Tiraram o corpo do homem e referiram-se ao seu sorriso. Um sorriso tão acriançado para um corpo tão velho e desfeito. Fazia sol e sombra por entre os passos da multidão que aumentava para verem o homem velho de barba grisalha que simplesmente faleceu onde se assentou.
10 Jan.

Na peça todos os actores estavam empenhados. E ninguém morreu no fim. Saíram todos do teatro com frio. Espalharam-se pelos bares da zona e sentaram-se nos seus automóveis polidos e muitos arrancaram para longe. Só ficou um vagabundo encostado a uma árvore perto da entrada do velho teatro, à espera que o mandassem embora. Mas ninguém apareceu. As portas do teatro fecharam. O frio da noite instalou-se. Certas luzes apagaram-se e o vagabundo acabou por adormecer envolto no seu grosso sobretudo. Morreu congelado à espera dum milagre.
10 Jan.


Onde estavam ondas agora rolam pedras. Como marés. Aonde estava o peso de muitas pedras está um sorriso. Tímido e cheio duma tristeza por catalogar. Melancolia única e de jardim enfeitado. Sabem, aqueles jardins muito bonitos mas sós de gente e crianças. Assim como um corpo nu mas sem ninguém que lhe pegue. Há jardins de cemitério sem gente sepultada. E muitos nos rostos de quem passa. Quem serão essas pessoas? Espelhos andantes? Que diria Virginia de tudo isto?
10 Jan.

Não tenho dinheiro para te dar, mas tenho ali dois pães de hoje. O pão mata a fome. Não mata as noites frias mas aquece o interior. Mas é só pão. E tu só tinhas uns papelitos para me pagar ontem e hoje? Tens mais algum poema? Dou-te os pães na mesma. Ficas-me a dever. Dois poemas dos pequenos, com a tua luz.
Agora as ruas não são as mesmas. Morreram um pouco, torcidas pela memória e sujas pela culpa. A noite matou-te sobre a forma duma motorizada mas os teus poemas são a nossa noite dividida. Entre as tuas sábias expressões e a nossa agonia dos dias. Sabias que tinhas conselhos que nunca os vivestes?
10 Jan.


Autor: Carlos Teixeira Luís

carochas, bicicletas & biplanos - 7


Eva - Anda, deita-te.

Ivan - Não consigo, as costas não endireitam…

Eva - Oh, céus e agora…

Ivan - Ajuda-me só a deitar-me de lado. Empurra-me.

Eva – Oops … e agora?

14 Mar.


Ivan - Eva?

Eva - Ivan, onde estás?

Ivan – Aqui. Olha para baixo. Acho que está a passar. Chamas o médico?

Eva – Mais uma injecção. Tens de pensar na operação, Ivan. Não podes continuar… assim.

Ivan – Tenho medo de ficar impotente ou paralisado. Tu sabes. Vou aguentando.

Eva – Isso é aguentar?

Ivan – Agora deixa-me só ficar aqui um pouco…

Eva – No chão?!

Ivan - … enquanto o médico… Fico aqui à espera de Godot.

Eva – Oh, não comeces… Vou já ligar ao médico. Sabes que horas são? Vou trabalhar daqui a 2 horas.

Ivan – Falta hoje por mim. Diz que estás doente.

Eva – Doente, eu?

Ivan – Sim, das costas e que esperas o médico. Que não te podes mexer. Depois telefona para o meu trabalho, diz que tenho de ficar contigo enquanto o médico chega.

Eva – Porque não ligas tu?

Ivan – Mas eu não me posso mexer. Tens de ser tu.

Eva (liga) – Estou, doutor Samuel? Por acaso não se chama Beckett também? Estou?

(risos)

12 Jun.



Autor: Carlos Teixeira Luís

ORQUÍDEAS NA JANELA


Já se conheciam
Mas nunca se sentiram assim
Com aquele desejo cor de jasmim

Os lábios se procuraram
E se acharam
Línguas entrelaçadas
Libido adocicada

Sussurros cobrindo a noite
As mãos deslizando pelos corpos
Entregues ao amor
Poros arrepiados sem pudor

Corpos sob lençóis se entregando
Seios misturados
Mamilos se beijando
Lábios se tocando
Suas orquídeas molhadas se amando

Sendo admiradas pela lua
Que timidamente
Olhava pela janela

Arnoldo Pimentel

carochas, bicicletas & biplanos - 6


rouco diz o louco

mouco não ouve o que diz o louco e continua a comer os seus torresmos com gordura e tempo, beberica o seu tinto de algures e mofo, sabe-lhe a pouco

rouco teima o louco que coça o toco

- nem por isso, já foi mais

o que o louco discorda e se põe a milhas – rouco, rouco… profere longe o louco

e nem uma moeda nem pouco

rouco cada vez mais

voz sem reboco e fica assim

6 Jan.


Todos os dias os vagabundos precisam de comer.

Todos os dias os vagabundos precisam de dormir.

Todos os dias os vagabundos precisam de beber.

Todos os dias os vagabundos vão pedir até conseguir.

Todos os dias até morrer.

12 Jan.




Autor: Carlos Teixeira Luís

carochas, bicicletas & biplanos - 5


Gostou dos personagens zangados. E dos que envelhecem e são irascíveis. Quando envelhecer… Quando envelhecer mais, vou ser assim: maldisposto e insolente. Posso muito bem não ser capaz. Mas tentarei. Uma bengala e umas cãs darão uma ajuda. Bem as cãs… Falta a bengala. Feita de pau-teimoso-e-rezingão. Então a vida valerá a pena. Afaste-se que eu vou passar. Vá, despache-se.

4 Jan.

Quer dizer que este senhor norueguês que escreve brilhantemente os seus contos e outros escritos, era um perfeito desconhecido por não haver quem o traduzisse, o que é pena e esta frase já está muito grande. Kjell Askildsen, nascido em 1929, premiado autor – comparado a Raymond Carver e também a Beckett (descubram porquê) não tem frases assim, grandes e com desperdício. Escreve o que é preciso e chega. Simples? O tanas. As suas personagens, cruzamo-nos com elas todos os dias – gente. Tu e eu. Velhos e novos. Doentes e saudáveis. Sóbrios ou nem por isso.

5 Jan.

Dois homens estavam à espera de um outro. Que chegou já de madrugada. Receberam-no perto da luz dum cadeeiro de rua e as sombras de uma grande árvore. Abraçaram-se e atravessaram uma grande avenida. Foram esperar uma mulher num bar dum velho teatro. Sabiam que estava aberto o bar, só para eles. Instalaram-se a um canto bebericando os seus portos. O dia chegou e a mulher não.

9 Jan.

Empurrou a mulher pelas escadas abaixo e chamou a polícia. Amava-a mas não a suportava. A polícia chamou a ambulância e levou a pobre mulher. Já não a suportava, repetiu o homem algemado a entrar no carro de polícia. Não mudou de argumento e ficou preso. Ninguém se lembrou do gato. Esse saltou a vedação e entrou na cozinha da velha senhora da casa ao lado. Aninhou-se num alguidar cheio de roupa lavada. A velha senhora sorriu:
- Estás em casa, gato…

10 Jan.


Autor: Carlos Teixeira Luís