Manifesto do coletivo Pó de Poesia

O Poder da Poesia contra qualquer tipo de opressão
Que a Expressão Emocional vença.
E que o dia a dia seja uma grande possibilidade poética...
Se nascemos do pó, se ao morrer voltaremos do pó
Então queremos Renascer do pó da poesia
Queremos a beleza e a juventude do pó da poesia.
A poesia é pólvora. Explode!
O pó mágico da poesia transcende o senso comum.
Leva-nos para um outro mundo de criatividade, imaginação.
Para o desconhecido; o inatingível mundo das transgressões do amor
E da insondável vida...
Nosso tempo é o pó da ampulheta. Fugaz.
Como a palavra que escapa para formar o verso
O despretensioso verso...
Queremos desengavetar e sacudir o pó que esconde o poema...
Queremos o Pó da Poesia em todas as linguagens da Arte e da Cultura.
O Pó que cura.
Queremos ressignificar a palavra Pó.
O pó da metáfora da poesia.
A poesia em todos os poros.
A poesia na veia.


Creia.


A poesia pode.


(Ivone Landim)



terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Viagem ao redor do entardecer

Uma bota gessada de cinqüenta dias de idade, coberta de desenhos,
frases, riscos e rabiscos de netos, outros parentes e aderentes, no
conhecido padrão da teoria do caos: no dorso do pé, homem de ferro
enfrentava um possível agressor extra-terrestre, no meio da canela, uma
caveira com a inscrição gope disposta em colarinho; na parte externa da
perna, pendia quase obscena, a língua carnuda de um rolling stone.
Rivaldo coçava a bota internamente com um mata-moscas, enquanto
acompanhava Bruno, numa hipnótica reprise televisiva com Eddie
Murphy; tão antiga, apenas o neto de nove anos, expert em sessão da
tarde e similares, conseguia rir daquilo tudo, pela zilionésima vez;
concessão de uma infância alegre e despreocupada. Vez por outra,
uma olhada no meticuloso trabalho da nora - sim , para ele nora, para
o filho, simplesmente a ex; bom, problema deles, a sua Amarylis
há muito partira deste mundo aguado; melhor para ela – pensou em
surdina, enquanto Cecília recolhia o quarto tapete com auxílio da
diarista; o carpinteiro fixava uma barra metálica no banheiro próximo
do seu quarto, quatro marcas na parede do corredor, indicavam a
iminente instalação de mais duas – não é o que mata velho mesmo?
Caganeira e queda , não necessáriamente nessa ordem, filosofou
contemplando a bota gessada. Encima da mesa, despontava do
embrulho uma luminária, cor de pêssego para a nora, para ele,
cor de erisipela braba: uma sentinela para o sono já peso – pena.
Rivaldo agora coçava as costas; para a nora, o seu melhor sorriso
aparvalhado. Não deixava de ver naquilo tudo, uma compensação
idiota para um descaso já indolor pela idade. Ele, Cecília e Bruno.
Uma família? Quem sabe? O filho mais velho, jogou tudo pro alto:
casamento, emprego bom, cidade grande e foi plantar uva nas margens
do São Francisco. De usura, deu três meses para o retorno do marido
pródigo, mas as coisas deram certo, vez por outra, uma caixa de uva,
com rótulo em dois idiomas, mimo para o velho pai . Sorriu para dentro
enquanto olhava as radiografias, contra o sol na janela: uma canela
rachada deu naquilo tudo, imagina se quebra o fêmur? Está ali, uma
rachadurazinha no meio do caminho, no meio da perna tinha uma
rachadura aos oitenta bem vividos; apenas aturado por falta de opção,
dizia o sorriso amarelo e o andar rebolante da...mãe do seu neto. Isso
mesmo. Mais oito dias: sem bota, estranhava a brancura pruriginosa
da própria perna, parecia não fazer mais parte dele. Bruno em casa,
as férias definhando, os dias embaralhavam-se no tédio, feito o carteado
sebento com que às vezes divertia o neto. Numa das últimas tardes de
janeiro, perguntou de chofre, as palavras pulando da cabeça para a
boca, direto, sem cerimônia, olhando firme para o garoto
- Bruno, vamos visitar teu pai, lá perto da Bahia?
Estranheza e alegria, os pequenos olhos sinalizaram em rápido movimento:
- Vamos. Nunca mais vi meu pai. Nessas férias não fui pra lugar nenhum.
Selado o trato, dedo nos lábios, pedindo o silêncio do neto e apontou na
garagem, a motocicleta deixada pelo filho, com o resto da antiga vida no
bagageiro: dois capacetes, um par de luvas, num saco plástico transparente;
um desafio negro, imponente até debaixo de poeira tão velha quanto a
fratura da perna. Na manhã seguinte, comprou gasolina que estocou
escondida na garagem. Lavou, limpou, regulou a moto, fingindo trabalhos
de carpintaria que afugentavam a faxineira: boa e oportuna serra elétrica.
Madrugada do dia seguinte, ambos de casaco e capacete, abriram as portas
da garagem, empurraram o cavalo de aço uns bons cinquenta metros.
Acomodou Bruno na traseira, ligou o motor, quicou a partida e
arremeteu, contra o vento seco de janeiro. Agora, a cem por hora, sentindo
o vento forte contra o corpo; o conjunto, uma vela enfunada sobre o
asfalto. Logo, a aridez da paisagem alternava-se com áreas verdejantes; vez
por outra passavam por cavalos e bois raquíticos, parecendo a caminho do
fim do mundo, em marcha desolada. Uma longa reta, surgem as primeiras
algarobeiras; Rivaldo grita para o neto que aquelas árvores são tipo
camelos de vegetação, crescendo no calor, quase sem água. O garoto
escuta de olhos arregalados, grita e gargalha, imaginando um camelo
com quatro galhos ao invés de pernas. Parada para o almoço. Bruno
de olhar parado, vendo um bode virando buchada, na cozinha do
restaurante de beira de estrada. Indignado, comeu apenas o pirão,
que era gostoso nem era bode. Povo danado de ruim, aquele dali,
que ainda matava o bode à cacetada. As pequenas cidades vão-se
emendando, feito um rosário de beato. A tarde vai findando; o sol, um
tição no céu avermelhado, vai saindo de fininho.


Conto de autoria de André Albuquerque.

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